Carta em Defesa da Universidade Pública
gratuita e de qualidade para todos e todas, mesmo em tempo de pandemia
Caros professores e
professoras, estudantes, técnicos administrativos e educacionais, pais, mães,
interessados em geral.
Frente
à necessidade emergencial de enfrentar o problema que a pandemia traz à
educação pública, notamos que o encaminhamento dado de forma quase que
hegemônica pelas instituições, quer da educação básica, quer no ensino
superior, repousa em propostas de ensino remoto por meio da internet. Esta
solução tem sido apresentada, via de regra, como a única possível e a mais
correta.
No
entanto, estamos todos cientes de que o que se afigura não pode ser
legitimamente chamado de “retomada dos processos escolares”, porque se trata,
sobretudo, de algo radicalmente diverso do que, como docentes, fazíamos
presencialmente.
Além
do problema mais evidente, imediato e sem solução das dificuldades de todos os
estudantes acompanharem as atividades em meio aos riscos de adoecimento e
morte, do aumento exponencial da contaminação registrados em números alarmantes
no país, estão sendo sistematicamente ignoradas questões decisivas como a
natureza do trabalho dos professores e do que está em jogo no processo de
ensino e aprendizagem.
Deflagrada
a condição de excepcionalidade que gradativamente foi se tornando cotidiana, a
máquina administrativa passou a emitir pareceres, resoluções e regulações
oficiais em que se supõe perdurar uma certa “normalidade”, na qual estaríamos
suficientemente saudáveis, esclarecidos, convencidos, equipados e preparados
para retomar as atividades letivas de forma remota com força total para o
cumprimento das cargas horárias, haja o que houver. E não é bem assim,
sabemos.
Os
debates das grandes corporações especializadas em plataformas e tecnologias de
ensino reforçam a ideia de que a adaptação ao novo ambiente tecnológico tornará
o ensino mais eficaz e veloz e que a sala de aula presencial perderá sua
importância histórica, uma vez que a educação, reduzida à aprendizagem, depende
apenas de engajamento. De outra parte, educadores e estudantes estão entre
paralisados e surpreendidos com a resposta única, a saber, o ensino remoto que
tal cenário impôs e que parece revelar nossa dificuldade em articularmos
coletivamente uma resposta à altura.
Ainda
que haja discussão nas instâncias decisórias, ela está centralmente direcionada
ao debate sobre o cumprimento do ano letivo, desconsiderando o fato de que a
pandemia tem agravado a condição socioeconômica e de saúde mental de grande parte
das nossas comunidades. Outras possibilidades poderiam/deveriam ser
consideradas, propiciando um debate para além das perspectivas em que se avalia
individualmente a condição ou não de ter atividades não presenciais, em uma
reflexão coletiva pautada no questionamento de medidas que excluem aqueles que
não têm, por motivos diversos, condições para seguir o calendário letivo, neste
momento de crise sanitária.
Qualquer
exame, mesmo que superficial, sobre o histórico das políticas públicas revela o
avanço persistente de projetos tecnocráticos de negligência, de desmonte e de
privatização dos bens públicos, que se acelera em meio a pandemia causada pelo
coronavírus. As determinações de retomada do calendário letivo ocultam razões
muito pouco educativas evidenciadas nas alegações e justificativas oficiais e
institucionais. Haja vista que não há nenhum fundamento educacional para a
adoção das atividades remotas como substitutas das presenciais, trata-se mais
de cumprir calendários predeterminados, mesmo que isso signifique grandes
perdas do ponto de vista formativo, com o que quase todos concordam.
A
materialidade tecnológica interfere e condiciona os aproveitamentos, na medida
em que modifica a relação com o tempo, com o espaço instaurando outra ordem na
percepção dos ambientes e das circunstâncias. A adoção de meios educacionais
está diretamente ligada aos objetivos e processos educativos e, assim,
atividades corriqueiras como assistir a uma aula, apresentar um seminário,
pesquisar, escrever e ler livros e artigos ficam submetidos ao mesmo plano de
experimentação, como se se tratasse apenas de variações de formas de apreensão
de conteúdos acadêmicos.
Sabemos
que a experiência presencial que a aula comporta é insubstituível e ocupa um
lugar fundamental no processo de formação; implica na apreensão em ato de uma
reflexão que se constitui conjuntamente e cuja depuração e incorporação
reorganizam o pensamento nascente do estudante. A natureza hesitante baseada na
experimentação da reflexão proposta pelo professor no momento da aula revela os
traços propriamente humanos da composição das ideias, ao contrário do texto
acabado, seja para ser lido ou apresentado em forma de conferência que
transmite uma ideia artificial do processo no qual o estudante está sendo iniciado.
A aula instaura um ritmo e uma temporalidade próprios que convidam o estudante
a participar de uma nova condição, distinta essencialmente das conversas, dos
noticiários e das formas usuais de contato com os meios de comunicação. O modo
de encadeamento e elaboração argumentativa solicitam um reordenamento da
atenção, pedem engajamento de um modo que nenhum meio técnico poderia fazê-lo.
Por isso, perdemos todos ao considerar que essa experiência tenha equivalente à
altura em qualquer outro tipo de atividade.
O
tempo da educação, do ensino e do aprendizado é, radicalmente, contrário a
qualquer tempo de emergência, de exceção. Escolas e universidades não sabem
lidar com emergências sociais, sabem, quando muito, apropriar-se e transformar
os dramas sociais em temas de estudo e de elaboração intelectual. Quando a
orientação e concepção de políticas públicas esteve baseada em estudos
acadêmicos? Isso não significa que esses estudos não tenham valor e alcance. Ao
contrário, significa que são sistematicamente desprezados pelas autoridades.
Por isso, pretender justificar que a volta às atividades letivas sejam fator de
combate aos “danos estruturais e sociais para estudantes e famílias de baixa
renda, como estresse familiar e aumento da violência doméstica” conforme consta
no parecer do CNE 5/2020 representa desvio das funções sociais da educação e
das instâncias que, verdadeiramente, deveriam ser responsabilizadas.
Concordamos
que não podemos nos afastar dos estudantes, que precisamos acompanhá-los,
orientá-los, voltar a engajá-los nos processos formativos, e justamente pela
responsabilidade que isso convoca precisamos ser cuidadosos nas decisões,
inclusivos na formulação de propostas, democráticos nas discussões e flexíveis
nos
desenvolvimentos. Mas o
modo como tem sido encaminhada a discussão faz parecer que só há duas escolhas:
a adesão à educação por internet como correspondente às atividades acadêmicas
regulares ou a simples recusa. Contudo, estão ausentes outras perguntas, para
além da simples divisão entre os pró e contra ensino a distância: Como garantir
o direito à educação sem exclusão? Qual passa a ser a função social da escola,
da universidade e dos professores durante e após a pandemia?
Se
continuamos a reivindicar que trabalhamos por uma educação no sentido de
garantir formação de qualidade para a cidadania, para a participação ativa na
sociedade, para o desenvolvimento humano, para o exercício profissional com
dignidade, para a defesa inegociável e democrática dos direitos humanos, para
combater as desigualdades e as discriminações, não podemos ceder – muito menos
sem crítica e oposição – aos imperativos imediatistas de medidas que nos
parecem, sob muitos aspectos, criadas apenas para atingir critérios de
desempenho e que impelem a um automatismo que nos distancia daquilo que
propicia de fato uma oportunidade fecunda para a educação.
A
suspensão do calendário acadêmico poderia ser a oportunidade para refundarmos a
relação entre ensino, pesquisa e extensão na universidade e inaugurarmos um
espaço de ampla escuta, acolhimento e ação coletivos no sentido de
aprofundarmos nosso conhecimento, análise e imaginação para um mundo pós
pandemia. Ou será que tudo funcionava de forma excelente, antes da pandemia,
restando-nos apenas garantir que tudo continue, em ritmo e frequência?
Com
as energias utópicas leigas tão em baixa, a esperança residual sobrevive
somente pela determinação intelectual de manter-se na luta, um pouco por
princípio, outro por responsabilidade, um tanto por honra, outro por costume,
estudando, debatendo, intervindo, ainda que a derrota seja diariamente
reeditada. Crer no processo que a luta instaura, manter-se engajado no que
desencadeia, orientar-se pelos êxitos que a história registra, precaver-se
contra as armadilhas do sistema, examinar criticamente as conformações que
chamam presente, aprender a pensar duas vezes antes de ceder aos voluntarismos
emergenciais, manter-se fiel aos princípios nos quais as pessoas são sempre
mais importantes do que as coisas e os procedimentos.
De
algum modo, as utopias, mesmo aquelas que justificaram nossas escolhas
profissionais pela educação, poderiam renascer, ainda que discretamente, desses
apelos, e é o que parece nos restar como esperança residual no momento. Assim,
estaríamos trabalhando na defesa e fortalecimento dos que mais precisam, de
introduzir a juventude na tradição e, assim, de zelar pelo futuro. É o que
defendemos, no que acreditamos e do que estamos convencidos.
Alexandre Filordi de Carvalho – docente
Unifesp Antonia Almeida Silva – docente UEFS Carmen Sylvia Vidigal Moraes –
docente USP Carolina Cunha da Silva – docente Prefeitura Municipal de São Paulo
Débora Cristina Goulart – docente Unifesp Denilson Soares Cordeiro – docente
Unifesp Horacio Martin Ferber – UBA – docente Argentina
Ingrid Aparecida Peixoto de
Borba – discente Unifesp Joaci Pereira Furtado – docente UFF Luciene Maria da
Silva- docente UNEB
Lucimêre Rodrigues de Souza- docente UEFS
Luiz Carlos Gonçalves de Almeida – docente APEOESP Márcia Aparecida Jacomini –
docente Unifesp Marcos Natanael Faria Ribeiro – IFSP/ doutorando Unifesp Marian
Ávila de Lima Dias – docente Unifesp Marieta Gouvêa Penna – docente Unifesp
Otília Fiori Arantes – docente USP Paulo Arantes – docente USP Ricardo
Casco – docente Universidade Ibirapuera Rosana
Evangelista Cruz – docente UFPI Rosana Gemaque – docente ICED-UFPA Roseli
Giordano – docente UFPA Sandy Lira Ximenes Lima – mestranda Unifesp Sandra
da Cunha Cirillo – mestranda USP Sergio Stoco – docente Unifesp Simone Moreira
de Moura – docente UEL Valdécio Silvério Bezerra – docente Unicid Valdelúcia
Alves da Costa – docente UFF
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Nasce preocupado com os caminhos do proletariado em geral, porém, especialmente, com o brasileiro