NOSSOS CORAÇÕES COMO ESCULTURAS DE VALENTÍN MALAVER
Emerson Xavier - PE
Verão 1986. Entre inesquecíveis amigos do sul da França,
trabalho na castração do milho, o menos fatigante de todos os trabalhos
agrícolas que tive de fazer naquele país durante minha época de estudos universitários.
Entre duas fileiras de plantas macho, seis fileiras de fêmeas, das quais
devíamos arrancar um talo, seu sexo, para evitar toda polinização indesejada.
Assim nos havia explicado o produtor agrícola. E eu dizia a meus colegas
que éramos “agentes da repressão sexual vegetal feminina”. Durante as pausas,
eu devorava um livro propriamente escandaloso: “La Storia, uno scandalo che
dura da diecimila anni”. No começo de cada capítulo de La Storia, a
autora Elsa Morante recorda os grandes acontecimentos históricos que marcaram o
ano em que evoluem os numerosos personagens, todos mortos ao final da
narrativa, inclusive a adorável cadela capaz dos mais sublimes e poéticos
raciocínios.
Sob
a pena de Morante, nenhum personagem é descrito de maneira a inspirar-nos ódio
ou nojo, mas apenas compaixão, mesmo quando praticam os gestos mais
condenáveis. Como não ser tomado de piedade por aquele soldado nazista, bêbado,
que estupra, quase inconscientemente, a professora primária do bairro San
Lorenzo de Roma?
No
mais alto das hierarquias sociais, aqueles que fazem a História; embaixo,
aqueles que a sofrem. Tal é a moral, se assim podemos dizer, de La Storia.
Quando de sua primeira publicação, o livro produziu um escândalo - termo
oportuno- na esquerda italiana e até mesmo no conjunto da sociedade. Um tão
atroz pessimismo negava todas as possibilidades aos “dias futuros alegres” –
expressão então comum a várias esquerdas europeias- e proclamava a inutilidade
de querer mudar a vida.
Aquele verdadeiro poema de mais de setecentas páginas
pesou como chumbo em meu peito. Pra quê havia eu lido aquilo? A literatura
violava minha última inocência. Não estava eu diluindo em água suja meus restos
de esperança?
Na História real que então vivíamos, a esperança
respondia pelo nome de Sandino. Ela havia descido as montanhas de Matagalpa e
conquistado Manágua. Ela se impunha aos movimentos de placas tectônicas. Os
generosos sandinistas sonhavam com uma sociedade pluralista construída a partir
de suas próprias bases culturais. O perdão era a principal palavra de ordem. Os
antigos guardas somozistas, que teriam enrubescido de vergonha muitos agentes
da SS hitleriana, foram liberados, e não fuzilados, pelo novo poder. O
cristianismo era a grande fonte espiritual de uma Revolução que alfabetizava o
povo e eletrificava o campo.
As primeiras vítimas do Grande Ódio foram justamente os
idealistas que lutavam então com lápis e fios de cobre. Pública e notoriamente,
os antigos guardas somozistas, aproveitando-se do perdão que lhes havia sido
concedido, treinavam na Flórida, financiados pelos Estados Unidos, preparando
uma guerra terrorista dirigida contra todo um povo. Dois países sem real
soberania serviram de base aos assassinos “criollos” financiados por
assassinos “wasp” e apoiados midiaticamente por assassinos puros: a
Honduras dos militares gângsteres e a Costa Rica, que era então governada pelo
mais cínico dos seres humanos, “Don” Oscar Arias. Foi uma guerra total.
A mídia francesa, entre outras tantas, generosamente
batizou as hordas terroristas de « guerrilha anti-sandinista ».
Aqueles escrevinhadores conheceriam seu idioma ainda menos que eu, que então
redigia em francês crônicas em série? Claro que não. Os grandes manipuladores são hábeis linguistas, semiólogos,
literatos. Ora, para que um grupo armado mereça a designação de
guerrilha, este deve lutar em minoria contra um exército regular no interior do
país cujo governo pretende derrubar, ter apoio popular, recuperar armas ao
inimigo e conduzir seu combate sem recurso a ações terroristas. Nenhum grupo
baseado em solo estrangeiro, abertamente financiado por uma potência
estrangeira e praticante de massacres de civis, inclusive de infantes e idosos,
pode ser confundido com uma guerrilha. E no entanto...
Na França, um promotor de violações sistemáticas de
direitos humanos, tão filósofo quanto um membro da Contra fosse guerrilheiro,
pedia aos “intelectuais” que assinassem um apelo a ser enviado ao Congresso
estadunidense implorando o financiamento de matadores de crianças ainda na
primeira idade. O Congresso
recusou-se a financiar tais massacres? Não seja por isso. O tráfico de crack e
cocaína os financiaria. Uma bomba explode numa escola maternal
nicaraguense. Um bispo também nicaraguense, que havia viajado a Washington para
solicitar armas para a Contra, declara: «A Contra mata apenas corpos; os
Sandinistas fazem pior ainda, pois eles matam os espíritos». O governo
sandinista não ousa aplicar a lei e pôr o bispo criminoso atrás das grades e se
contenta em expulsá-lo do país. Karol Wojtyla denuncia então uma “perseguição
religiosa”. Mais tarde, ele humilharia publicamente os religiosos que se
mantinham fieis à mensagem cristã e participavam de um governo assediado pelo
terror. Ele os humilhou frente a milhares de pessoas, ignorando os pedidos desesperados
das mães das vítimas da guerra, que lhe pediam orações por seus filhos mortos.
O jornal Le monde inverteria deliberadamente a ordem das
coisas, fabricando uma narração completamente mentirosa de uma « afronta
feita ao papa João Paulo II”. Anos depois, aquele jornal reincidiria no crime,
lembrando aos seus leitores, os cúmplices conscientes e os ingênuos, na mesma
data, a fabulosa “afronta”. Decididamente, Goebbels produziu êmulos além-Reno.
Voltemos porém ao nosso milho inicial. Depois de ter
castrado milhares de inocentes senhoritas vegetais sem defesa, fui convidado
por uma equipe de teólogos dominicanos para ser intérprete de um grupo de 12
pessoas em viagem de estudos à Nicarágua. Eram os mesmos dominicanos que haviam
acolhido Frei Tito em seu convento na pequena cidade de L’Arbresle. Tantas
vezes havia eu meditado sob a árvore que Tito usara para se enforcar. Mas a
esperança se havia sediado na América Central e eu ia poder infirmar o
pessimismo de Elsa Morante.
Nas ruas de Manágua, jovens estadunidenses abundavam;
vinham manifestar sua solidariedade com os agredidos. Não. O mundo não estava
perdido. No lago Manágua, um grupo de cooperantes dinamarqueses compõe uma
mancha branca na multidão. Um dos cooperantes fala francês como um suíço de Genebra
e me explica lentamente o que são as minas antipessoais. Deus meu! E eu havia
imaginado ter perdido a inocência com a leitura de um romance! O dinamarquês
levou-me a um centro de reabilitação em que pude ver dezenas de jovens de 18
anos com uma só perna. Ainda os vejo, aqueles jovens, mesmo de olhos fechados.
No Parlamento nicaraguense, um deputado tão gentil
quanto ingênuo declararia : « Não seremos esmagados por nossos
inimigos. É impossível que um Bem tão grande e tão sincero seja destruído por
um Mal tão monstruoso. »
O mercenário estadunidense Eugene Hansenfuss acabava de
cair em solo nicaraguense com seu helicóptero repleto de armas compradas com o
dinheiro do crack introduzido pela CIA nas comunidades negras dos Estados
Unidos. O presidente Daniel Ortega, que havia sido eleito com 67% do voto
popular, declarou: « Nossa vingança contra o senhor Hansenfuss será
libertá-lo para que ele possa se reencontrar com sua esposa e seus filhos”.
» Um Bem tão grande e tão sincero...
O ministro das relações exteriores, o padre Miguel
d’Escoto, mais tarde presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas,
nos explica como o amor ao Cristo anima a Resistência de seu povo. Tenho
dificuldade me reter as lágrimas ao interpretar seu discurso em francês.
Nosso grupo visita San Francisco – San Pancho, como
dizem carinhosamente os « nicas » - o primeiro povoado atacado pela
Contra, baseada a apenas 3 km
dali, mas já em território hondurenho. No museu erigido em homenagem aos
primeiros mártires, suas roupas, botas e objetos que portavam sobre si no
momento do sacrifício. Nas paredes, suas fotos ampliadas e um poema que o padre
do povoado, um estadunidense, havia escrito a mais jovem das vítimas, um
adolescente de 15 anos.
Seu pai veio testemunhar uma enésima vez diante de mais
um grupo vindo do estrangeiro. Ele nos contou o assassinato de seu irmão,
depois de seu filho, cujo cadáver foi descarnado e depois exposto em praça
pública com um cartaz no qual se podia ler: “eis o que acontece àqueles que
apoiam este governo”. Em seguida, ele nos contou como a Contra o havia
capturado e levado a um acampamento, torturado e depois obrigado a participar
de um ataque contra seus próprios vizinhos e amigos. E enfim, como ele havia
conseguido escapar de seu cativeiro e retornar a seu povoado.
E ele nos contou tudo isso com sua voz calma, como se
tivesse aprendido com aquelas experiências algo de essencial, que estávamos a
léguas de poder compreender. Sem dramatismo, ele tirou a camisa e nos mostrou
as marcas de torturas inscritas em suas costas.
De repente, seu rosto foi ilumindo pelo brilho de seus
olhos lacrimenjantes. Ele olhava, sorrindo ao mesmo tempo, a foto de seu filho
sacrificado no meio da parede. Nos olhos do menino, podíamos ler tudo: seus
sonhos de um novo mundo, suas cartas de amor a garotas do povoado, seus
primeiros poemas, a dedicatória escrita num livro presenteado ao papai quando
de seu aniversário. Esse papai nos disse: “Olha, é o meu guri” (Mira, es mi
chaval).
A compostura que me havia forjado em casa do padre
Miguel D’Escoto desta vez não pôde ao menos ser esboçada. Uma tempestade de
sentimentos se formava dentro de mim e anunciava para breve um furacão. Pedi a
uma freira francesa que me substituísse, alegando a necessidade de aguar uma
árvore. Sob aquela árvore, sentei-me prometendo a mim mesmo derramar apenas
algumas lágrimas, só o necessário para não explodir, para que meu pequeno
coração, incapaz de abrigar todas as dores do mundo, continuasse a bater. Votos
inúteis. Fiel a seu anúncio, minha tempestade interior assumiu as proporções
exigidas pelo momento. Comecei a chorar convulsivamente, perdendo o controle de
minha voz, de meus gestos.
O pai do menino assassinado, com uma sabedoria advinda
de uma dor infinitamente maior que a minha, veio ter comigo. Não para nutrir meu
desespero, tampouco para me consolar, mas para me ensinar a ser homem. Deu-me
um amigável tapa nas costas e disse-me com firmeza: «As lágrimas que havia
que derramar, já as derramei todas. Levante-se e vá fazer seu trabalho. »
Segui só parte de seu conselho. Levantei-me, retomei meu trabalho de
intérprete, mas choro até hoje aquela dor.
A primeira citação do livro da Morante diz :
« Não há palabra em nenhuma língua humana capaz de consolar as cobaias
que sabem porque vão morrer. » Naquela mesma época, o jornal Le MONDE
publicou: «O que faz Reagan na Nicarágua é apenas diplomacia, pois regimes
como o sandinista não podem evoluir de outra forma”. »
No
avião de retorno, eu retomava sem fé as palavras ingênuas do deputado
sandinista : « Um Bem tão grande e tão sincero... » Mas eu já
sabia que o terrorismo iria ganhar aquela guerra, pois a Resistência sandinista
não contava com o apoio exterior. Os países e as instituições que se proclamam
democráticas deixaram que aquilo acontecesse. Os partidos da esquerda “ocidental”
exageravam sobre os erros do sandinismo e o acusavam de crimes que jamais foram
cometidos. O comandante Thomas Borge, estupefato, declarou: «Recusam-nos até
mesmo o direito ao erro».
Esgotado por uma guerra sem fim, o povo nicaraguense fez
uma aposta arriscada e se rendeu. Daniel Ortega, que havia sido eleito,
reitero, com 67% dos votos na eleição anterior, foi derrotado na eleição
seguinte pela candidata dos terroristas. Derrotado, mas não completamente
vencido, o sandinismo tinha ao menos a honra de ter instaurado uma democracia
representativa no país. Ao invés de uma ditadura de um filho da puta (Roosevelt
-aquele que criou o New Deal dele excluindo os Negros- gostava de repetir: «Somoza
é um filho da puta, mas é o nosso filho da puta»), havia agora um jogo
eleitoral.
Alguns anos mais tarde, Ortega seria de novo candidato
às presidenciais. O jornal Le Monde, sem o menor pudor, publicaria então: «O ex-ditador
Ortega tenta voltar ao poder através de eleições». Le Monde é um jornal que
reescreve a história como lhe convém. O que conta sobretudo é sua firme decisão
de apoiar criminosos de guerra sob todas as latitudes de nossa América dita
latina, os milhares de Klauss Barbie, “criollos” ou importados, que
espalham fogo e sangue em nossos países. O magnífico chargista Plantu, hoje
fervente lacaio das piores ditaduras do mundo árabe, emprestou suas mãos
ao crime, igualando os idealistas sandisnistas e os torturadores do somozismo.
Noam Chomsky concluirá que Le Monde «é o mais reaganiano dos jornais».
Entre o fim do século XIX e o começo do século XX, 400
milhões de pessoas dessa parte do mundo que se faz erroneamente chamar de
“Ocidente” (que Edward Said possa perdoá-los) frequentaram os zoológicos
humanos onde nós, os condenados da terra, éramos expostos como nenhum animal
mereceria sê-lo.
Esse
adestramento à maldade, ao desprezo do Outro, é o que explica, talvez, a
crueldade quotidiana das mídias promotoras de violação em massa de direitos
humanos e a estupidez magnânima dos falsos intelectuais. Isso explica talvez
também a tolerância, a complacência e até a cumplicidade de tantas pessoas de
bem frente aos crimes midiáticos. Pessoas que, certamente, nos amam, mas com o
sentimento daquelas e daqueles que se engajam em alguma Sociedade Protetora dos
Animais.
Para
atingir um patamar de humanidade aceitável segundo certos paradigmas
« ocidentais », seria talvez preciso esquecer nossa História, abraçar
rebeliões mais fáceis de serem assumidas, já que inofensivas ao modo de
produção/destruição capitalista. Seria preciso adotar um nacionalismo estreito,
regido pelo egoísmo e pelas leis do interesse, comer lixo industrial e olhar a
televisão, chamando tudo isso ao mesmo tempo de “qualidade de vida”; seria
preciso cancerizar-se ao micro-ondas e enfim morrer abandonado num hospital
privatizado. Pois bem, não! Não
renuncio à minha condição humana, àquela que este “Ocidente” nos recusa.
Uma recusa absoluta, pois se as práticas monstruosas do
jornal Le Monde, de El País e outras aberrações semelhantes, se a militância
extremista de Bernard-Henry Lévy, Glucksman e Finkielkraut e outros escudeiros
de Satanás não constituem violações sistemáticas e maciças dos direitos
humanos, é que não somos considerados seres humanos. Bípedes falantes, por
certo, mas menos, bem menos humanos que um alemão, um francês ou um belga. Devo
ainda dizer, antes que convoquem enraivecidos à minha lapidação, que só Deus
sabe o quanto eu amo a Alemanha, a França e a Bélgica, países onde vivi
momentos maravilhosos com pessoas maravilhosas.
O advento da Revolução bolivariana, pondo fim a uma
ditadura disfarçada de democracia sem verdadeira participação eleitoral em
proveito de alguns bandos de delinquentes, reacendeu a esperança nos corações
eternamente resistentes. Lucie Aubrac, ícone da Resistência Francesa, tinha
razão: a Resistência compete a todas as gerações e a todos os povos. A
Revolução bolivariana é nossa grande chance de revanche sem vingança. Pacífica,
porém armada, como repetia amiúde o comandante Hugo Chávez, esta Revolução é a
ressurreição dos espíritos libertadores de há dois séculos. Pablo Neruda tinha razão. Bolívar volta a
cada século. Sua espada avança pela América latina.
As cinzas de nossos campos de batalha se reconstituem em
plantas, em animais, em mulheres e homens e dotados de memória ancestral.
Bandos de pássaros Fênix habitam a ilha de Margarida, no
Caribe venezuelano. Pela magia das mãos de Valentín Malaver, eles emergem da
pedra bruta e adquirem a doçura das plumagens e o olhar misterioso dos seres
que conhecem «as trajetórias imperceptíveis, códigos de geometria
existencial», para retomar as palavras do mestre e maestro siciliano Franco
Battiato. Deixando a aspereza dos plintos, os Fênix de Valentín Malaver, de
ultra velozes ascensões, mergulham nos ares para aterrissar em nossos corações,
de onde voltam a alçar voo rumo a outros horizontes que só contemplaremos em
toda plenitude pela graça do retorno a nossa consciência mineral. E depois nós
renasceremos.
DADOS DO AUTOR
Emerson Xavier,
jornalista, poeta e escritor brasileiro, natural do Estado de Pernambuco, com larga experiência em cobertura internacional, intérprete em vários idiomas e professor. Contato: emersonxavierster@gmail.com
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Nasce preocupado com os caminhos do proletariado em geral, porém, especialmente, com o brasileiro