JUDEUS E GENOCÍDIO
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Judeus e Genocídio
Os sionistas gostam de reivindicar o termo genocídio em nome de todos os judeus, mas agora os antissionistas começam a fazer o mesmo. Alguns antissionistas e supostos anti-imperialistas vêm repetindo a falsa alegação de que o termo foi inventado para denotar a matança de judeus. A única razão que vejo para isso é a manutenção da falsa imagem de que o genocídio foi obra de seres excepcionalmente vis. Na verdade, o genocídio é o comportamento normal dos poderes imperiais e coloniais. Apesar das várias tentativas de reabilitar os impérios como algo de nobre em certo nível, o fato é que todos os projetos coloniais e imperiais são inescapavelmente genocidas.
No entanto, alguns ideólogos nacionalistas judeus alegam que o único verdadeiro genocídio foi aquele levado a cabo pelos alemães contra os judeus. Tais ideólogos são chamados “excepcionalistas do holocausto” e suas alegações são amplamente entendidas pelos estudiosos do genocídio como absurdos que se apoiam em mentiras. É justo supor que os excepcionalistas do holocausto são geralmente ardorosos sionistas. Por isso fico alarmado ao ver esta mentira central e fundamental sendo espalhada por antissionistas, anti-imperialistas e escritores pacifistas. Esta mentira é a ideia de que o termo genocídio foi, de alguma forma, significado para descrever particularmente o judeocídio.
Um escritor foi tão longe nessa ideia ao ponto de postar que a palavra genocídio “foi inventada... com o objetivo de ressaltar a diferença entre assassinar judeus e matar raças inferiores.” Esta mentira é tão risível quanto facilmente refutável. Qualquer um pode levar meia hora lendo o capítulo 9 do livro de Raphael Lemkin Axis Rule in Occupied Europe (que pode ser acessado aqui) para saber que de forma alguma Lemkin usou o termo “genocídio” para aplicá-lo exclusivamente aos judeus ou ao judeocídio que estava acontecendo no momento mesmo em que ele escrevia.
Quando se recusa a aceitar ou até mesmo a reconsiderar uma alegação comprovadamente falsa é porque se trata da base essencial de uma mentira ainda muito maior.
Para os sionistas, a óbvia necessidade é fazer de Israel uma entidade moralmente imaculada e incapaz de fazer qualquer mal. Os excepcionalistas do holocausto têm de realizar tremendas contorções mentais para evitar confrontar o fato de que o genocídio não é intrinsecamente relacionado ao judeocídio, mas aparentemente os sionistas não estão sós nisso. Quando tentei corrigir outras pessoas quanto a essa questão, encontrei um sonoro silêncio e até mesmo censura. A questão é: por que estes pacifistas ou antissionistas não querem enfrentar uma tão simples verdade? O que estas pessoas têm a esconder? Ou de que se estão escondendo?
Genocídio é uma palavra extremamente importante. É por essa razão que a significação da palavra é supressa. É um termo como “terrorismo”, que é usado e abusado apaixonadamente por pessoas que nem em um milhão de anos serão capazes de explicar o que esta palavra realmente significa quando a usam.
Muita gente abusa do termo genocídio com muita emoção e nenhum pensamento. No entanto, há também pessoas que censuram outras pelo uso inapropriado do termo quando elas mesmas também são completamente incapazes de dar-lhe uma verdadeira definição. O debate entre estes dois lados é um inteiro ainda mais idiota que a soma de suas partes por se tratar de uma discussão isenta de qualquer raciocínio. O conflito é invariavelmente entre uma parte que acredita que alegar que algo é genocídio é uma questão de paixão, coragem e engajamento moral, e outra parte que acredita que etiquetar algo como genocídio é prematuro, precipitado, irracional, sectário ou carente de legitimidade acadêmica.
Ideias inaceitáveis
Você deve estar se perguntando como tanta idiotice tem podido se espalhar. É muito simples. No fim da Segunda Guerra Mundial, um mundo traumatizado por aquela experiência queria saber como aquilo tinha podido acontecer. As pessoas queriam criminalizar os líderes alemães e japoneses e entender o que havia levado aquelas sociedades a causar tal violência. As pessoas queriam entender aquilo como criminalidade e patologia. Mas há duas áreas nas quais as mentes questionadoras se aventuram e que estão marcadas por sinais de cabeças de caveira sobre ossos cruzados e embaixo está escrito: “FIQUE FORA!”
A primeira dessas áreas concerne à guerra que recém acabara. Os vitoriosos nessa “Guerra Justa” estavam, na verdade, empapados no sangue de inocentes e isso era uma questão muito delicada. Há pouco celebramos o septuagésimo aniversário do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki e ainda se omite o fato de que aqueles bombardeios não foram militarmente justificáveis. Seu objetivo não era ganhar a guerra contra o Japão. Como tampouco eram justificáveis os bombardeios que precederam o lançamento das bombas atômicas.
Na verdade, a maior parte dos bombardeios “estratégicos” levados a cabo pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial foram simplesmente assassinatos em massa de populações civis, e eram contraproducentes do ponto de vista militar – um mau uso de recursos que impediu avanços militares. Eu poderia ilustrar isso em detalhes, mas, para ganhar tempo, deixe-me apelar para uma comparação. A União Soviética produziu mais armamentos que qualquer outro país durante a guerra. Os soviéticos não construíram aviões bombardeiros para atacar as cidades alemãs. Fazer isso teria sido impensável, quase suicida e um desperdício de recursos. Os aliados ocidentais podiam dar-se ao luxo de desperdiçar recursos e pessoal num projeto de assassinato em massa, mas o cálculo estratégico subjacente era o mesmo – era algo militarmente contraproducente.
Com as mortes de milhões de civis pesando nas consciências dos líderes e na consciência coletiva dos povos que haviam lutado contra o mal maior do Eixo, a última coisa desejável seria sugerir que as ações dos líderes aliados ao matar civis eram algo intrinsecamente e essencialmente ligado às atrocidades cometidas pelo Japão e pela Alemanha. Coletivamente e individualmente, conscientemente e inconscientemente, as pessoas sabiam que não deviam explorar nenhuma noção que sugeriria que os assassinatos em massa de civis pelos Aliados tinham alguma conexão fundamental e imutável com os assassinatos em massa de civis pelos poderes do Eixo.
O melhor resumo disto foi feito pelo promotor de justiça estadunidense Robert Jackson na declaração de abertura do julgamento de Nuremberg, “Nunca devemos esquecer que o registro em que julgamos esses réus hoje é o registro em que a história nos julgará amanhã. Passar a estes réus um cálice envenenado é colocá-lo em nossos próprios lábios também.” A notar que ele não está falando de um julgamento futuro de um regime futuro, mas sobre como a “história” vai “nos” julgar – ou seja, a ele Jackson e seus contemporâneos.
O discurso da Guerra agressiva que foi criado em Nuremberg foi precisamente e cautelosamente formatado para construir um crime do qual os alemães eram culpados, mas não os Aliados.
Eis por que Hermann Göering gritava de vez em quando “E sobre Hamburgo?” e “E sobre Hiroshima?” Göering sabia que isso não constituía propriamente uma defesa legal, ele estava tentando fraturar o âmbito da narrativa com a qual os promotores e juízes se legitimavam a si mesmos.
E depois, há outra área proibida – outro lugar do qual a consciência coletiva (e muita consciência individual) foge apavorada. Além de evitar qualquer sugestão de que as atrocidades cometidas pelo Eixo podiam ter alguma semelhança com a prática dos Aliados, que consistia em incinerar seres humanos inocentes por dezenas de milhares, era também imperativo que não houvesse de forma alguma sugestão de que as conquistas e ocupações feitas por japoneses e alemães pudessem minimamente se assemelhar àquelas políticas imperiais e coloniais da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos.
A Pavorosa Verdade
Para ser bem claro: os Aliados mataram milhões na Segunda Guerra Mundial, mas os poderes do Eixo mataram dezenas de milhões. É razoável afirmar que a agressão pode ser justamente chamada “o supremo crime internacional, sendo diferente de outros crimes de guerra na medida em que ela contém em si o mal acumulado da totalidade dos crimes”. Assim, sugerir que há equivalência moral entre os crimes dos Aliados e do Eixo não é algo aceitável (da mesma forma que não é aceitável alegar equivalência moral entre os crimes do nazismo e os crimes dos regimes comunistas da URSS e da China).
Dito isto, seja como for, as atrocidades que os alemães e os japoneses cometeram contra os povos da Europa e da Ásia inevitavelmente se assemelham aos crimes de outros poderes hegemônicos coloniais e imperiais. Os poderes do Eixo, incluindo-se aí também a Itália, quiseram conscientemente reproduzir as conquistas imperialistas e colonialistas do Reino Unido e da França. A diferença é que, com as mudanças tecnológicas, a intensidade e a velocidade foram sem precedentes. O que teria levado 50 anos para se equiparar à matança feita pelos Britânicos levou apenas 5. Mesmo assim, o princípio foi o mesmo, e não se pode senão pensar que a principal razão pela qual as pessoas viam uma distinção moral entre a expansão imperial da Alemanha na Europa e aquela do Império Britânico na África é que as vítimas dos alemães eram, em sua maior parte, brancas.
Enquanto isso, políticas deliberadas e sistemáticas de matança de civis dominaram a chamada “estratégia de bombardeio” do Reino Unido e dos Estados Unidos durante guerra. Aí também há uma arrepiante semelhança em relação às políticas de assassinato em massa levadas a cabo pelos alemães e pelos japoneses. Eric Markusen e David Kopf publicaram um documentado livro chamado The Holocaust and Strategic Bombing, o qual traça paralelos entre a maneira como os alemães e os Aliados ocidentais justificavam assassinatos em massa cada vez maiores alegando destacamentos clínicos e inevitabilidade, usando pavorosos eufemismos – os alemães falavam em “evacuar” enquanto os Britânicos falavam em “desabrigar”.
O fato é que há uma conexão fundamental e essencial entre o atual extermínio de povos, como aquele dos aborígenes da Tasmânia, a superexploração que provocou 10 milhões de mortes em Potosí e mais 10 milhões no Congo do Rei Leopoldo, e a destruição cultural e social que acompanhou a submissão política e a dominação imperial ou neocolonial. Neste âmbito, há também práticas de limpeza étnica e tentativas sistemáticas de reduzir uma população civil através do assassinato, do impedimento de nascimentos ou da redução material do bem-estar para reduzir o tempo de vida das pessoas.
Os alemães fizeram, ou tentaram fazer, tudo isso acima citado contra vários povos sob a liderança nazista do “Terceiro Reich”. Sob vários aspectos, este projeto era incoerente e até contraditório, e ainda assim, visto com suficiente distanciamento, ele tinha uma forma singular distinta. Um homem, Raphael Lemkin, viu isso e nisso reconheceu “um plano coordenado de diferentes ações com o objetivo de destruir as bases essenciais da vida de grupos nacionais.” Ele chamou isso de “genocídio”.
Genocídio Disney
Lemkin teve uma profunda percepção, a qual tinha três coisas em comum com outras mudanças fundamentais no pensamento paradigmático. A primeira é que isso teve uma longa gestação. Lemkin não baseou sua ideia nas políticas da Alemanha sob Hitler. Ele andou pesquisando e pensando estas questões desde sua adolescência, quase três décadas antes. Ele estava horrorizado pelo genocídio Armênio e levou sua juventude tentando entender e mostrar o que havia de mais relevante naquela violência, com o objetivo específico de elevá-lo à categoria de “crime internacional”.
A segunda é que sua significância era muito maior do que aquela percebida originalmente por Lemkin. Mais tarde, o próprio Lemkin, em grande prejuízo para sua própria carreira e para seu status político, estabeleceu um elo claro entre genocídio e ocupação colonial. Ele levou muito tempo em sua vida escrevendo sobre a destruição genocida de povos indígenas nas Américas. Acho que ele fez isso apesar da sua própria vontade de pensar o melhor de seu novo país, os Estados Unidos.
Se ele tivesse vivido mais tempo, ele teria sido obrigado a se confrontar com o fato de que o imperialismo é inerentemente genocida, mesmo quando não está engajado em ocupações coloniais.
Ao invés de buscar impor o “padrão nacional” do centro imperial, o imperialismo busca impor um “padrão imperial”, o qual é igualmente alheio àquele do grupo vítima, mas também consolida sua dominação numa hierarquia etnorracial imperialista. Isso é realizado com exatamente a mesma destruição econômica, cultural, política e social e com o mesmo deslocamento forçado, a mesma concentração e os mesmos assassinatos em massa que caracterizam os genocídios de ocupações coloniais. Isso é verdadeiro independentemente do fato do Império ser predominantemente formal, informal ou neocolonial.
A Terceira coisa que acontece quando chegam novas ideias revolucionárias é que as pessoas tentam se agarrar a crenças e modelos de pensamento desatualizados. Elas resistem, e no caso do genocídio, essa resistência tem sido alimentada por interesses políticos e dado um fértil meio discursivo pelas experiências históricas das relações externas e internas da Alemanha do Terceiro Reich. A natureza do genocídio foi obscurecida a partir da gênese do termo por um estridente e alto imaginário do excepcionalismo nazista.
Uma ênfase excepcionalista foi uma das duas reações opostas ao sofrimento sem precedentes infligido ao mundo pelo regime nazista. A outra ênfase foi tentar entender que condições haviam levado membros de nossa espécie a fazer ou permitir coisas que parecem, visto do exterior, um mal desmesurado.
Uma porção de coisas boas e más surgiu da linha de pensamento, mas eu diria que isso foi altamente proveitoso para sociedades que pensam a experiência alemã como algo a ser estudado e evitado. Foi dessa tradição, a qual é sempre, pelo menos, parcialmente relativista, que surgiram conceitos como “a banalidade do mal” de Hannah Arendt, e nosso entendimento da psicologia dos autoritários.
Penso que um aspecto extremamente pavoroso de nossa vida contemporânea é que nosso entendimento dessas características nazistas tem se desvanecido. Tal desvanecimento acontece quando estas mesmas características se tornam cada vez mais manifestas e de maneira cada vez mais desumanamente cínica no discurso oficial. Dois exemplos recentes: o manual de campo de “Leis da Guerra” dos Estados Unidos autoriza o assassinato de jornalistas; um professor de West Point quer que os militares matem advogados e estudiosos que se oponham às ações militares dos Estados Unidos (devem se tornar objetivos militares). Nem precisa mencionar os ataques a mesquitas e a vários outros inimigos da liberdade militar dos Estados Unidos.
Em contraste com aqueles que buscam uma profunda compreensão do nazismo, todas as formas de excepcionalismo implicam tomar aspectos supostamente únicos de algo e apresentá-los como características essenciais e determinantes. Isso superestima a substância desses aspectos que são alegadamente excepcionais e, sendo isso aceito, todas as comparações se tornam impossíveis.
Esta abordagem excepcionalista pode ser vista no famoso filme de propaganda de Disney do tempo da guerra “Education for Death” (Educação para a Morte).
É compreensível que houvesse o desejo de dramatizar a natureza opressiva e invasiva do regime nazista, mas o filme encerra uma abordagem fetichista que é literalmente uma versão de desenho animado da realidade Como propaganda, isso é de se esperar, mas não é como se as pessoas, depois da guerra, se dissessem: “Agora que a guerra acabou, preciso ter uma visão mais nuançada do governo nacional-socialista da Alemanha se quiser realmente compreender a natureza desse regime e suas atrocidades.”
O perigo das narrativas excepcionalistas é que eles denegam o contexto e se recusam a autorizar comparações. O resultado de tudo isso é que as pessoas enfatizam as coisas ruins do jeito fetichista e caricatural que já mencionei. Assim, os excepcionalistas estadunidenses criaram um fetiche a partir de aspectos superficiais de sua constituição; eles são formalmente e informalmente doutrinados desde a mais tenra idade para se verem como partes essenciais da democracia. Na realidade, o excessivo foco e atenção dada em seguida à natureza “democrática” da governança dos Estados Unidos, de fato facilita e muito o desenvolvimento e o entrelaçamento das relações de poder não democráticas.
De maneira muito semelhante, uma narrativa excepcionalista sobre a Alemanha Nazista enfatiza aparências superficiais e destrói qualquer tentativa de aprender e evitar que isso se repita. Para usar uma analogia reductio ab Hitlerum, é como dizer que tudo sempre vai permanecer legal enquanto o mais alto cargo político não for ocupado por um cara que tem um bigode engraçado.
Excepcionalismo de Holocausto
Eis uma questão a múltipla escolha:
Os Estados Unidos acabam de vencer uma Guerra contra as forças obscuras encarnadas na Alemanha e no Japão. Há uma palavra nova chamada “genocídio”. Você está propenso a pensar que esta palavra designa a) O que Hitler fez aos Judeus, b) o que Hitler fez aos Judeus e o que foi feito aos povos indígenas da América do Norte para que fossem criados os Estados Unidos – ilustre sua resposta com referências às aparições de John Wayne na tela.
Está claro que nenhum cidadão comum dos estados vencedores quereria pensar que o crime de genocídio, que viu milhões de Judeus serem sistematicamente assassinados, constitui parte proeminente de seu orgulho pela herança nacional. Canadá, Aotearoa, os Estados Unidos e a Austrália, não querem ver suas origens manchadas por comparações com os assassinatos em massa cometidos pela Einsatzgruppen. A URSS não queria ver na terrível fome na Ucrânia nem nas limpezas de transmigrações étnicas de Stálin nenhuma semelhança com os Campos nos quais tantos dos seus morreram. E os velhos poderes imperiais, França e Grã-Bretanha, não querem ver suas brilhantes tradições e hegemonia civilizatória equiparadas de forma alguma a asfixiar crianças com gás.
No solo fértil do excepcionalismo nazista, que já estava estabelecido, era inevitável que o excepcionalismo do holocausto criasse raízes, não apenas segundo a crença explícita dos linha dura, mas também como o ponto de partida obrigatório para o discurso de qualquer leigo em geral. A crença de base é que o Holocausto é o arquétipo perfeito do que é um genocídio e que outros eventos são ‘genocidários’ na medida em que possam ser comparados ao Holocausto.
O que é este Holocausto de que eles estão falando? Parte do problema é que se trata de um conceito extremamente escorregadio. O verdadeiro problema é que as pessoas não querem uma robusta definição para o Holocausto. Elas querem ser capazes de saber o que isto é sem ter convincentemente delineado este saber. Para muitas pessoas, o Holocausto é emotivo, porém vago. É algo incompreendido, mas não no modo como um evento histórico, por exemplo, A Guerra das Rosas ou o reinado do Imperador Qin Shi Huang pode ser incompreendido; é que sua imagística impressionista é tão poderosa que ela ofusca verdadeiros detalhes. É algo compreensível, porém lamentável ainda assim.
O Holocausto é tão sufocante que um filme como A Lista de Schindler teve de ser feito em versão monocromática porque mesmo a sombra e os tons cinematográficos retocados que são convencionalmente usados na Europa ocidental na Segunda Guerra Mundial são insuficientes para um verdadeiro campo de concentração. Genocídio foi literalmente feito pra ser em preto e branco. Nossa sensibilidade sobre a questão é tão alta que regadores usados para refrescar os visitantes de Auschwitz deram lugar a muitas reações por serem considerados por alguns reminiscências das “duchas do Holocausto” (como disse um noticiário certa vez).
Não tinha nada a ver, é claro, com as “duchas do Holocausto”. As realidades não são menos horríveis que as imagens do pesadelo, mas elas são mais complicadas. Na verdade, as realidades são mais horrorosas que as crenças simbólicas e, uma vez que delas tomamos conhecimento, não podemos desaprendê-las. E é por isso que as pessoas criaram uma imagética totêmica do Holocausto.
Elas podem sentir todo o horror, a dor e a cólera sem a incapacitante depressão. A maior parte delas não sente o fardo da obrigação de parar de sofrer. Ao invés disso, mergulhadas nas visões caricaturais sóbrias dos “Mostradores de Holocausto”, elas são mais capacitadas e mais tendentes a infligir sofrimento porque elas estão artificialmente separando o sofrimento de certos seres humanos de outros membros da mesma espécie.
A abordagem simbólica ou caricatural para a conceptualização do Holocausto tem a vantagem de que você não precisa ser categórico sobre algo para chegar à característica determinante. É possível reter a noção de que o Holocausto está encapsulado na conspiração da Solução Final, no Judeocídio, e nas câmaras de gás dos campos da morte. Tudo aquilo que não fizer parte desta visão é ou forçosamente incorporado ou essencialmente ignorado.
Para esclarecer minha observação, deixe-me chamar sua atenção para o papel a) das câmaras de gás e b) da Solução Final. Essas duas coisas são sinônimo de genocídio no espírito de muitas pessoas, mas Lemkin nunca as incluiu em sua descrição de genocídio pela simples razão que ele não sabia nada sobre elas.
E ainda mais, se essas coisas não tivessem existido, isso teria significado que muitos mais judeus teriam sobrevivido relativamente falando, mas muitos judeus europeus teriam sido mortos ainda assim pelas políticas de genocídio descritas por Lemkin.
Àqueles judeus que morreram vieram se acrescentar aos milhões de outros que morreram em consequência do genocídio. A Solução Final e as câmaras de gás estão claramente ligadas ao genocídio na medida em que são o meio de levar este a cabo inteiramente e consistente com a lógica do genocídio tomada da maneira mais extrema – aquela do extermínio. Essas coisas estão ligadas ao genocídio, mas elas não tipificam, e menos ainda encarnam o genocídio.
O resultado final é que o exemplo mais paradigmático do genocídio, o Holocausto, é uma sub-representação de si mesmo, quanto mais do genocídio em sua totalidade. Para muitos, no entanto, isso significa que quando alguém decide usar a palavra que começa por “g”, esse alguém constrói o genocídio novamente reconhecido como sendo uma imagem refletida do Holocausto mitologizado.
Pela manutenção dessa pureza excepcionalista, ninguém precisa aceitar algo como genocídio se não tiver vontade. De fato, há pessoas que ficam chateados quando alguém etiqueta algo de genocídio com base na ideia de que ao fazer isso, se está colocando o perpetrador no nível das piores atrocidades de crimes de massa cometidas pelos alemães. Inversamente, alguém pode se apropriar da imagística do Holocausto para qualquer coisa de que não goste, particularmente se esse algo puder ser etiquetado de antissemita. Num exemplo extremo, um homem foi recentemente filmado numa manifestação contra o “acordo nuclear com o Irã”; o homem gritava que Obama estava liberando dinheiro para o “regime nazista e terrorista que estava construindo câmaras de gás nucleares!”
Lei de Kelly
Se você está tentando estabelecer a validade moral de atos pela refutação de qualquer comparação com os atos de Hitler, você está defendendo o indefensável.
Muitos leitores estarão familiarizados com a lei de Godwin: “quanto mais longa for uma discussão em linha, maior será a probabilidade de que haja alguma comparação envolvendo Hitler ou os nazistas”. E o corolário mais comum é que o lado que fez a analogia ficou sem argumento.
Agora uma coisa vai com a outra, e talvez sempre tenha sido mais fácil usar isso contra o pensamento crítico, ao invés de promovê-lo. Já eu proponho que precisamos mesmo é de uma “lei” que declare que se você está tentando estabelecer uma validade moral de atos com base em qualquer comparação que seja com Hitler, é que você está defendendo o indefensável. Isto é verdade se a reação é aquela visceral de um israelense que cospe e berra com fúria mais genuinamente transtornada frente à sugestão de que Israel está cometendo suicídio, e também é verdade se a reação vier na forma dos maliciosos sarcasmos de especialistas, políticos, burocratas ou acadêmicos, que reagem com desdém frente aos que afirmam que os Estados Unidos, o Reino Unido ou a França cometeram genocídios.
O corolário da Lei de Kelly é que não apenas deve a pessoa que refuta a comparação com Hitler estar defendendo o indefensável, mas elas estão praticamente certas de, ao fazer isso, demolir um espantalho.
Dizer que alguém cometeu genocídio não é o mesmo que dizer que há equivalência moral com Hitler, da mesma forma que dizer que evoluímos através de um processo de seleção natural não é o mesmo que chamar alguém de macaco. Por exemplo, em seu livro Empire (Império), Niall Ferguson foi o primeiro a comparar as ações das forças Britânicas durante a Revolta Indiana, com as ações dos SS contra os Judeus, mas ele concluiu que de fato os Britânicos não foram tão maus assim, como se isso melhorasse as coisas.
O excepcionalismo nazista e o excepcionalismo do Holocausto são presentes contínuos. Com tanto que você não construa campos da morte com gigantescas câmaras de gás e crematórios, você pode incinerar e matar de fome centenas de milhares de pessoas. É como o teflon dos perpetradores de genocídio. É o escudo que os protege de qualquer acusação séria de ter mal agido intencionalmente porque qualquer tentativa de sugerir uma intenção sistemática detrás da violência de massa do Ocidente é deslegitimada como tentativa de homologar nossos líderes aos Nazistas. Temo que isso tenha de continuar até o ponto em que os governos ocidentais, particularmente o governo dos Estados Unidos, se tornem de fato equivalente morais dos Nazistas – e temo que esse momento se torne cada vez mais próximo com o tempo.
Um novo Holocausto
As pessoas não querem enfrentar a realidade do genocídio, porque elas têm de admitir que os estados ocidentais estão agora mesmo cometendo em massa atos de genocídio.
As intervenções ocidentais mais evidentes no Oriente Médio, na África e na Ásia Central têm criado destruição e mortandade em massa.
O ritmo da violência que há hoje em dia não se iguala àquele do bombardeiro durante a Guerra da Coreia, quanto mais a enorme escala de violência da Segunda Guerra Mundial. No entanto, esta violência nunca para. Ela parece destinada a continuar pela eternidade e a escala da morte continua a crescer. As intervenções ocidentais de diversos tipos espalharam conflito e instabilidade e continuam a magoar feridas abertas, amiúde culpando as vítimas. Não posso me impedir o sentimento de que se a Alemanha não tivesse estado em guerra, as políticas do genocídio Nazista teriam sido lentamente perpetradas.
A destruição e a violência vêm frequentemente dos inimigos dos Estados Unidos, mas acho que as pessoas estão começando a perceber que, em maior ou menor medida, os Estados Unidos são amiúde o criador e o financiador de seus inimigos. Mais ainda, estes inimigos são amiúde materialmente dependentes dos Estados Unidos seja diretamente, seja através de regimes aliados. Esta é a nova realidade, ou pelo menos uma das novas realidades. Lemkin compreendia o genocídio como atos disparates que só podiam ser relacionados uns com os outros quando se entendia o raciocínio estratégico subjacente a todos estes.
É por isso que antissionistas estão adotando o excepcionalismo do Holocausto. Israel fornece tão facilmente os vilões caricaturais, Netanyahu e seu gabinete de colegas políticos que não consegue sustentar dois meses sem que um ministro peça o extermínio ou a limpeza étnica dos não judeus.
Eles podem da mesma forma ter um líder com um bigode engraçado. É fácil e confortável, mas é algo estúpido. Israel não tem o poder de efetuar toda essa destruição, nem controla os Estados Unidos. Tudo o que os Estados Unidos fizeram seguiu a mesma trajetória desde 1945. Tentar explicar suas atuais ações genocidas é como tentar explicar a trajetória de uma bala de canhão por uma forte rajada de vento que apareceu durante o percurso sem se tocar minimamente de que pode ter havido um canhão em algum ponto da história.
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Nasce preocupado com os caminhos do proletariado em geral, porém, especialmente, com o brasileiro