sábado, 24 de dezembro de 2022

O poder das greves clássicas * Kim Kelly / NUSO

O poder das greves clássicas
Kim Kelly

Greves não são algo do passado, e isso vale particularmente para o setor de transporte (trens, ônibus e aviões). Nessas áreas, os trabalhadores ainda têm a capacidade de influenciar o poder constituído em defesa de seus próprios direitos – afetados pela precarização – e, em muitos países, até mesmo apoiar trabalhadores de outros setores por meio de greves de solidariedade.

A Ação de Graças é provavelmente o pior feriado dos Estados Unidos. Mesmo deixando de lado a terrível história genocida que ele encobre, os dias em torno de nosso antigo consumo ritualizado de grandes aves secas e acompanhamentos pesados – geralmente na presença de nossos entes menos queridos – são um dos períodos de viagem mais frenéticos do ano, e 2019 não foi uma exceção. A Associação Automobilística Americana (aaa) estimou que 49 milhões de estadunidenses viajariam pelo menos 80 quilômetros de carro para o feriado de Ação de Graças, e a associação Airlines for America1 previó que 31 milhões voariam entre 22 de novembro e 3 de dezembro. O impacto ambiental será brutal, e o estresse de lidar com todos esses passageiros enfurecidos é uma pesada carga para os trabalhadores aeroportuários. Espera-se um certo nível de caos, mas, graças ao trabalho dos sempre sobrecarregados e frequentemente mal remunerados trabalhadores de transporte, a maioria dos viajantes chegará a seu destino antes que o peru seja servido.

Neste ano [2019], no entanto, essa viagem deve ser um pouco mais complicada. Ontem, trabalhadores de catering de companhias áreas em 17 importantes aeroportos do país – entre eles, o jfk de Nova York, o O’Hare de Chicago, o lax de Los Angeles e o dca de Washington – encenaram o que seu sindicato unite here chamou de a maior demonstração de trabalhadores aeroportuários dos eua em muitos anos. Os protestos fizeram parte de uma crescente campanha que busca chamar a atenção para a condição dos trabalhadores de catering, muitos dos quais «vivem na pobreza», enquanto a American Airlines, que adquire seus serviços por meio de firmas subcontratadas como lsg Sky Chefs e Gate Gourmet, relatou um lucro líquido de 1,4 bilhão de dólares em 2018. Como observa o unite here, uma pesquisa recente realizada com centenas de funcionários da lsg Sky Chefs mostrou que «30% dos trabalhadores não possuíam seguro, e 35% dependiam de assistência à saúde subsidiada pelo governo para seu tratamento ou o de seus filhos».

O período de negociação dos contratos dos trabalhadores de catering se iniciou em 31 de dezembro de 2018; a Gate Gourmet começou a mediação em 26 de setembro do mesmo ano, e a Sky Chefs, em 21 de maio de 2019. Salário, plano de saúde e condições de trabalho inseguras são os principais temas levados à mesa de negociação por ambos os grupos de trabalhadores. «Eu trabalho no dfw, o principal aeroporto da American Airlines. Ele se localiza na cidade em que a companhia aérea foi fundada e onde construiu uma nova e luxuosa sede», observa Stephanie Kopnang, integrante do unite here. «Ainda assim, estamos entre os serviços de catering com pior remuneração do país. Se eu não fizer horas extras, não posso pagar o aluguel e as contas do mês», acrescenta.

Os membros do unite here questionam há meses as condições de exploração insustentáveis a que estão submetidos em ações que envolveram desde a simulação de morte na Filadélfia, em outubro de 2019, até protestos realizados em diversos aeroportos durante o verão boreal. Em julho, trabalhadores de catering de 33 aeroportos votaram majoritariamente pela greve quando o Conselho Nacional de Mediação os liberou da negociação. O tempo está se esgotando para que as companhias aéreas comecem a levar esses trabalhadores a sério e atendam às suas reivindicações, pois – como já deixaram bastante claro – estão dispostos a fazer todo o possível para obter o contrato que eles e suas famílias merecem. «Estou nesta luta por minha filha Ariana de 12 anos. Eu pago 400 dólares por mês de plano de saúde só para poder levar minha filha ao médico e tratar de sua asma crônica», explica Shandolyn Lewis, trabalhadora de catering de Detroit. «Trabalhamos para uma empresa subcontratada, a lsg Sky Chefs, mas nosso trabalho gera lucro para as companhias aéreas. Sem nós, elas não teriam comida nem água para oferecer aos passageiros. Não podemos esperar mais pelo que merecemos».

Além dos trabalhadores de catering, os comissários de bordo, que já estão se preparando para um grande fluxo de passageiros ansiosos e antipáticos durante o feriado de Ação de Graças (haja controle emocional!), têm travado suas próprias batalhas. Os comissários da Hawaiian Airlines votaram a favor da convocação de uma greve – a primeira decisão nesse sentido nos 90 anos da companhia aérea – após o fracasso das negociações contratuais iniciadas em janeiro de 2017. Esses trabalhadores recebem menos que colegas de profissão de outros estados, apesar do alto custo de vida das cidades onde moram. Há seis meses organizam piquetes informativos no aeroporto internacional de Honolulu com o apoio de seu sindicato, a Associação de Comissários de Bordo (afa-cwa), e de Sara Nelson, presidenta da mesma associação que passou a participar dos protestos em junho. Assim como os trabalhadores do unite here, os comissários da Hawaiian Airlines não podem entrar legalmente em greve até que o Conselho Nacional de Mediação os libere das negociações e transcorra um «período de esfriamento» de 30 dias. Depois disso, contudo, o céu é o limite.

Os funcionários de companhias aéreas não são os únicos do setor de transporte nessa luta. Os motoristas de ônibus da Autoridade de Trânsito da Área Metropolitana de Washington (wmata, na sigla em inglês) que trabalham na estação Cinder Bed Road, na Virgínia, já estão em greve há meses. Eles integram o sindicato Amalgamated Transit Union (atu), filial 689, e a estação Cinder Bed Road é operada pela multinacional francesa Transdev. Trata-se da primeira estação da wmata administrada por uma empresa privada em quatro décadas. Os trabalhadores iniciaram a greve em 24 de outubro de 2019 por preocupações relacionadas a segurança, práticas de trabalho injustas e problemas de serviço, além da evidente disparidade salarial: de acordo com o sindicato, os condutores da Transdev desempenham exatamente o mesmo trabalho daqueles empregados diretamente pela wmata, mas ganham 12 dólares a menos por hora. Também precisam pagar 6.000 dólares para o plano de saúde, enquanto seus pares da wmata não pagam nada. Esse duplo sistema de salários e benefícios, no qual os trabalhadores são classificados e pagos de modo diferente para desempenharem a mesma atividade, assemelha-se às condições que levaram à greve geral na General Motors, no início de 2019, e quase fizeram o mesmo com a ups em 2018. As patronais adoram salários diferenciados porque podem economizar em indenizações e, em alguns casos, até mesmo gerar discórdia entre os membros do sindicato. Mas a injustiça inerente ao sistema irrita os trabalhadores, e os esforços da gestão para dividi-los estão começando a se voltar contra ela. Graças ao espírito de grupo da filial 689 do sindicato atu, eles conseguiram chegar a esse ponto, e não vão desistir agora; como cantaram em um videoclipe recente realizado pelo grevista Otis Price: «Não brinquem com o meu dinheiro, não brinquem com a minha família».

A greve da Cinder Bed Road contou com o apoio de outros membros do sindicato, inclusive dos que trabalham no Fairfax Connector, o maior sistema de ônibus da Virgínia e o terceiro maior da área da capital estadunidense. Os trabalhadores sindicalizados do Fairfax Connector, cujo contrato já expirou, autorizaram uma greve em 9 de novembro de 2019, e sua rede será operada – adivinhe só – pela Transdev2. E essa não é a primeira vez que a empresa francesa protagoniza um conflito trabalhista com o Departamento de Veículos Automotores (dmv, na sigla em inglês); em 2018, a Transdev chegou a um acordo para evitar um processo aberto por cinco motoristas do Paratransit3 de Baltimore que afirmavam receber «4 ou 5 dólares por hora», de acordo com um dos demandantes. No início daquele mesmo ano, a cidade de Baltimore processou a Transdev por um suposto superfaturamento de 20 milhões de dólares para operar o serviço de ônibus Charm City Circulator.

É difícil imaginar a Transdev tentando realizar esse tipo de conduta abusiva em sua sede de Paris. Os trabalhadores franceses são conhecidos por sua eterna predisposição à greve. Os profissionais do transporte já realizaram diversas grandes paralisações neste ano e planejam outras para o mês que vem. No Canadá, cerca de 3.000 trabalhadores da Canadian National Railway fizeram sua primeira greve em uma década em 19 de novembro de 2019. No entanto, foi anunciado em 26 de novembro de 2019 que a empresa e o sindicato Teamsters Canada chegaram a um acordo preliminar. A greve representou grandes problemas para o frágil governo do primeiro-ministro, Justin Trudeau, porque paralisava o transporte de petróleo e produtos agrícolas em todo o país.

Enquanto isso, a Lufthansa enfrenta uma possível greve no período de Natal. Em 25 de novembro do ano passado, os controladores de tráfego aéreo italianos interromperam bruscamente suas operações e impediram a decolagem de mais de 100 voos da Alitalia; e trabalhadores da South African Airlines acabam de encerrar uma greve complicada. Além disso, a Finnair, companhia aérea nacional da Finlândia, precisou cancelar quase 300 voos no 24 e 25 de novembro devido à greve de solidariedade iniciada por seus trabalhadores em resposta a um conflito trabalhista que afeta mais de 9.000 trabalhadores do serviço postal do país. A greve também envolveu os condutores de ônibus de Helsinque, e o Sindicato dos Marinheiros da Finlândia interrompeu a navegação de todas as embarcações de cargas e passageiros com bandeira finlandesa até novo aviso, provocando um duro golpe para o turismo e a economia do país.

Em sua maioria, essas greves de solidariedade são ilegais nos eua por conta da odiada Lei Taft-Hartley de 1947, que impôs restrições a boicotes secundários, greves jurisdicionais e as chamadas greves «selvagens» (ou seja, que violam cláusulas de proibição ou ocorrem sem a aprovação dos líderes sindicais). Os professores da Virgínia Ocidental, que lançaram a corrente #RedforEd [Vermelhos pela Educação], declararam uma greve selvagem, e o mesmo ocorreu em Kentucky e Oklahoma. Os caminhoneiros do Teamsters, que se recusaram a entregar veículos da General Motors às concessionárias durante a recente greve da empresa, também se envolveram possivelmente no tipo de boicote secundário proibido pela Lei Taft-Hartley. Algumas regras foram feitas para serem quebradas. Ainda assim, a existência da lei torna mais difícil para os trabalhadores estadunidenses organizar o tipo de paralisação em grande escala que os de outros países podem praticar com impressionante regularidade. O Chile e a Colômbia presenciaram greves nacionais em novembro de 2019; as ruas de Roma foram tomadas por grevistas em outubro; Sudão, Índia e Catalunha passaram por convocações de greve geral em 2019; manifestantes em Hong Kong declararam uma em agosto; e, no início do ano passado, centenas de milhares de mulheres na Espanha realizaram uma greve coordenada que durou todo o Dia Internacional da Mulher.

Embora as restrições da Lei Taft-Hartley dificultem nos eua revoltas em grande escala da classe trabalhadora semelhantes às realizadas em outros países, sua própria existência revela a importância de ações contínuas dos trabalhadores do transporte: nossa infraestrutura de transporte é vulnerável, e os trabalhadores sindicalizados têm a capacidade de provocar um verdadeiro caos.

Isso é algo que sindicatos como o Teamsters e o Sindicado Internacional de Estivadores e Trabalhadores Portuários (ilwu, na sigla em inglês) sempre compreenderam. Motoristas de entrega e trabalhadores do transporte se encontram em uma posição perfeita para mover (com vigor) as alavancas do poder. Alguns meses atrás, mais de 300 membros da filial 455 do Teamsters de Denver, Colorado, entraram em greve na unidade de distribuição de alimentos da Sysco por problemas de segurança. O destacado histórico de militância do ilwu não pode ser subestimado: o sindicato está atualmente ameaçado com uma decisão judicial que o condena a pagar 93,6 milhões de dólares por lentidão de trabalho e paralisações em Portland que, segundo seus advogados, foram realizadas em resposta a práticas trabalhistas injustas.

Como esses e outros trabalhadores do transporte mencionados deixam bem claro, uma forma infalível de atrair a atenção para um problema é interferir nos planos de viagem das pessoas, no envio de seus produtos, na entrega de suas encomendas ou em seu deslocamento. Durante o Workers Revival Fest, evento artístico e de mobilização realizado em Kansas City em 2018 e planejado pelo grupo Missouri Jobs With Justice [Empregos com Justiça no Missouri], conversei com um senhor grisalho que trabalhou durante décadas no transporte ferroviário. Segundo ele, as pessoas não percebem o grande poder que sua categoria ainda possui e como a infraestrutura de transporte é essencial para manter o país em funcionamento. «Nós podemos parar este país em três dias», afirmou.

Depois que aeroportos foram palco de protestos em 2017 como resposta ao repugnante veto de Donald Trump à entrada de cidadãos de países muçulmanos (que continua vigente e pode se intensificar), a Justiça suspendeu e depois suavizou a restrição. Quando mineiros da Blackjewel bloquearam um trem de carvão no Kentucky até receberem seus salários, eles atraíram a atenção de todo o país e receberam o que lhes deviam. Menos de uma semana após Sara Nelson, presidenta do afa-cwa, pedir aos líderes de seu sindicato que considerassem a ideia de uma greve geral para derrubar a paralisação governamental (shutdown) cruel e mesquinha imposta por Trump, voos dos principais aeroportos deixaram de ser realizados por motivos de segurança, já que vários controladores aéreos da costa leste se declararam doentes para não trabalhar. Como consequência, o governo voltou atrás no dia seguinte. Há um motivo para que a simples ideia de uma greve dos trabalhadores do metrô seja suficiente para provocar pânico em todo nova-iorquino ou para que a mera possibilidade de cancelamentos de voos em cascata faça um tirano retroceder de sua decisão. Os trabalhadores do transporte têm a chave da economia e de nossa sociedade como um todo. Sem eles, nada ou ninguém pode chegar aonde precisa, por mais importante que acredite ser.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

O ultraimperialismo estadunidense e A Divina Comédia de Dante Alighieri * Luis Eustáquio Soares - Pátria Latina

O ultraimperialismo estadunidense e A Divina Comédia de Dante Alighieri.

Luis Eustáquio Soares - Pátria Latina

“O homem, em realidade, não é, como afirma a lírica aparência da sociedade capitalista, um ser isolado, mas um ser social, cuja vida está ligada por milhares de fios aos outros homens e ao conjunto do processo social.” György Lukács, Crítica, p.361.
Onde o sol não luz

Qual é a lei geral da história? Marx a formulou assim: “O ser social determina a consciência humana” (MARX, 2008, p. 58). E o que é o ser social hoje? É o modo de produção capitalista mundialmente estabelecido como imagem e semelhança do Pentágono, espelhado em cada ato de compra e venda dolarizado, que amalgama e molda o mundo realmente existente, entrelaçando instituições, crenças, modos de ser, estar e viver, com base na militarização geral das relações sociais.
Em relação ao planeta do dólar nas alturas, o poema-livro, clássico da literatura mundial, A Divina Comédia de Dante Alighieri, se atualizado, pode ser bastante sugestivo para o entendimento do sistema cultural, político e econômico do ser social contemporâneo, agitado por guerras, golpes, divisões e alienações dolarizadas – um verdadeiro inferno planetarizado. Refiro-me ao seguinte verso do Canto I, de “O Inferno”, que assim se diz: “tal que aconteceu que a fera inquieta, /vindo contra mim a pouco e pouco,/ me empurrava para onde o sol não luz” (ALIGHIERI, 1979, p.11).

A voz lírica, nos versos citados, alude a uma loba faminta, insaciável, que impulsiona o poeta para onde “o sol não luz”, isto é, para o inferno. Mais adiante, no mesmo Canto I, o poeta Virgílio, guia de Alighieri, assim descreveu a loba faminta: “porque essa loba por cuja causa tu gritas/não deixa passar pessoa alguma por seu caminho,/ mas a impede, a fim de a devorar;/ e tem natureza tão má e cruel,/ que nunca sacia a fome que a abrasa,/ e depois de ter comido tem mais fome que antes./ Muitos são os animais com quem se ajunta,/ e mais seriam ainda, até que venha o Veltro, / que fará morrer a loba com dor” (ALIGHIERI, 1979, p. 15).

Comparo a loba faminta de Dante ao ultraimperialismo estadunidense, porque, como este, além da natureza má e cruel, se alia a outras feras, vale dizer: a oligarcas de todas as estirpes, latifundiários, juízes, procuradores, fundamentalistas das diversas religiões, fascistas, nazistas, lúmpens, pastores, influencers, identitaristas e ,ao fim e ao cabo, a todos e todas que acatam conscientes ou inscientes seu veredito: o inferno para a humanidade genérica, condenada a um mundo onde “o sol não luz”.

E esse mundo “onde o sol não luz” deve ser analisado em conformidade ao método do materialismo histórico, que deve assumir a seguinte perspectiva (desde que os EUA lançaram duas bombas atômicas em duas cidades japonesas, impondo-se como o soberano que passou a decidir o estado de exceção do capital em escala planetária): o mundo realmente existente, seu ser social, é o do capitalismo à imagem e semelhança do ultraimperialismo estadunidense.

Ora, isso diz tudo e não diz nada, criticarão, porque não explica a situação da América Latina, da África, da Ásia e tampouco questões mais imediatas e nem por isso menos importantes como a violência de gênero, o racismo. Trata-se de uma crítica procedente, sendo por isso que o método do materialismo histórico primeiro deve objetivar a totalidade do ser social realmente existente, porque estamos todos dentro dela e todos somos determinados por ela, uma vez que somos seres de relações sociais e estas são sim as do modo de produção capitalista dolarizado e militarizado.

Entretanto, é preciso ao mesmo tempo investigar as particularidades regionais, assim como as que dizem respeito à violência de gênero e persistência estrutural do racismo; e, para tal, é necessário dialeticamente analisar cada formação econômico-social, considerando sua história específica, a fim de entender, por exemplo, como a América Latina, a África, a Ásia ocupam a posição que ocupam em um mundo sobredeterminado pelo faroeste ianque.

De qualquer forma, uma coisa é certa: a escrita cuneiforme encontrada em placas no Iraque tem mais a dizer sobre a nossa realidade específica que a programação da TV Globo, quintessência da alienação.

As três formas inseparáveis de alienação do capitalismo.
Se o ser social é o que precede a consciência, então não há nada a fazer? A consciência humana estará sempre refém da realidade que a determina? É evidente que não, embora outra premissa se imponha de modo irrecusável, qual seja: para mudar o mundo é preciso objetivá-lo, conhecê-lo em seus múltiplos aspectos, econômicos, políticos, militares, culturais, tendo em vista a realidade tal como é e não como se suponha que seja; a realidade do modo de produção capitalista, na era do complexo industrial-militar-cultural dolarizado do ultraimperialismo estadunidense.
Antes de analisá-lo, o ultraimperialismo ianque, é preciso fazer a pergunta básica: o que é o capitalismo? É o modo de produção mundial de alienação, em tempo real, também chamado de sistema integrado de fetichismo da mercadoria. E o que é a alienação? É sempre, em qualquer caso, o aviltamento do trabalho e não existe nada mais aviltado e humilhado que o trabalho alienado, porque confirma a sua própria condição de extorquido, desumanizado.

Existem três formas inseparáveis e objetivas de alienação no modo de produção capitalista: a alienação que diz respeito à relação estrutural e antagônica entre o capital e o trabalho, a alienação mercantil e a alienação relativa à divisão social desigual do trabalho.

São alienações intercambiáveis e imanentes à civilização burguesa, pois, como evidenciou Marx na segunda edição alemã de O capital, o capitalismo é um sistema que funciona de cabeça para baixo porque nele o capital, que não produz nada, é o dono de tudo; e o trabalho, que produz tudo, não é dono de nada.
A primeira forma de alienação do capitalismo é a que diz respeito, assim, às relações sociais antagônicas e interdependentes entre os donos dos meios de produção, os burgueses; e aqueles que só têm a sua força de trabalho, as suas vidas, para sobreviver, entregando-as aos donos do mundo – a classe operária.

A alienado em primeiro grau no sistema do capital é a do trabalho, da classe operária, por estar ao mesmo tempo alienada dos produtos de seu trabalho, das mercadorias que produz, e de si mesma, por gastar o tempo de seu trabalho para outrem – para os burgueses, que também são alienados, mas de uma forma distinta, de segundo grau, por não serem efetivamente os produtores de suas riquezas, o que os transforma em alienados em relação aos trabalhadores que os enriquecem.

A primeira forma de alienação da civilização burguesa evidencia, como salientaram Marx e Engels em A sagrada família, que no capitalismo a alienação é a regra, embora essa regra sempre beneficie os burgueses, sendo a condição objetiva da desumanização da classe operária.

Os primeiros se enriquecem com a alienação, tornando-se semideuses; e os segundos, diferentemente, tornam-se miseráveis no interior de um sistema que os extorque, condenando-os a serem os produtores de um mundo que sempre se voltará contra eles, inexoravelmente.

Esse é o motivo pelo qual fundamentalmente são os trabalhadores que estão na obrigação de se desalienarem, razão por que não existe nada mais importante na vida, sob qualquer ponto de vista, que o trabalho desalienado, chamado por Marx e Engels de trabalho revolucionário, no Manifesto comunista.
Se o capitalismo é um sistema de dupla alienação, a do burguês e do operário, tudo o mais que advém nele e dele é alienação. Uma delas, a segunda forma, diz respeito às relações mercantis, cuja fórmula, projetada por Marx em O capital, é esta: M-D-M (D, dinheiro; M, mercadoria) e, ato contínuo, D-M-D, dinheiro, mercadoria, dinheiro. A civilização burguesa é um sistema universal de relações entre mercadorias e dinheiro, essa mercadoria das mercadorias, razão por que se constitui antes de tudo como uma civilização em que tudo tende a se tornar mercadoria – e tudo é tudo mesmo!

Ora, se a relação entre capital e trabalho, como primeira e dupla forma de alienação do modo de produção capitalista, está na base de um sistema de relações alienadas, a mercantil, essa segunda forma, consagra no cotidiano a primeira, universalizando relações alienadas entre mercadorias e ao mesmo tempo impulsionando e ratificando a terceira, qual seja: a da divisão desigual internacional do trabalho – vale dizer, para ser redundante, do trabalho alienado atomizado em nome da produtividade do capital.

Como demonstraram Marx e Engels em A ideologia alemã, a divisão do trabalho pôs em campos desiguais e muitas vezes opostos a cidade em relação ao do campo, assim como o trabalho intelectual e o manual, separando indústria, comércio e agricultura, ao mesmo tempo em que conformou formas de pensar, valores e estilos de vida coextensivos aos pontos de vista separados alienadamente um do outro; e desigualmente posicionados no que diz respeito aos ramos da indústria, do comércio e da agricultura.

O patriarcalismo inaugurou a divisão entre trabalho masculino e feminino, ao mesmo tempo em que substituiu uma formação econômico-social matrilinear por outra, patrilinear. O modo de produção escravista impôs a divisão entre trabalho livre e o trabalho escravizado, assim como o modelo medieval ratificou relações sociais de produção divididas por estamentos piramidais, separando nobres de plebeus. O mercantilismo, no período de expansão colonial europeia, dividiu o mundo entre colonizadores e colonizados, assim como o modo de produção capitalista se estruturou e se estrutura pela divisão antagônica entre as classes, a burguesa e a operária.

A divisão social do trabalho é um efeito do desenvolvimento das forças produtivas. No interior do modo de produção capitalista, Marx, sempre Marx, identificou a sua lei, ao mesmo tempo o seu calcanhar de Aquiles: a tendência de queda da taxa de lucro, tornando a civilização burguesa historicamente condenada a se findar. Por quê? Porque a formação orgânica do capital, sob a forma de capital constante ( meios de produção e matérias-primas) torna os custos da produção cada vez mais caros, diminuindo tendencialmente os custos do trabalho.

O burguês e o trabalhador são classes antagônicas. Entretanto, em um sistema em que a alienação é a regra, são também classes alienadamente interdependentes. Ao acumular riquezas, o capital lança cada vez mais o mundo do trabalho para a miséria, esse inferno dantesco. Isso torna os custos do capital cada vez mais altos, acirrando a concorrência entre capitalistas e gerando a superprodução de mercadorias.

Tudo funciona como se a segunda forma de alienação, a das relações mercantis, entrasse em curto-circuito porque o capitalista não produz mais-valor por geração espontânea e tampouco pelo avanço da tecnologia e, assim, do plus-valor ou mais-valor relativo. A interdependência alienada entre o capital e o trabalho está fadada à crise por culpa da própria alienação do capitalista que, como dono dos meios de produção, só conhece a lógica da acumulação de capital.

E, é bom que se diga, essa não é uma questão moral. Não depende de o capitalista frear sua voracidade de acumular. É uma questão de alienação. A consciência de classe do capitalista é necessariamente alienada porque, de outro modo, deixará de ser capitalista e assumirá, como fez Engels, um filho de capitalista, a posição do trabalho contra o próprio capital.
A consciência de classe para os donos dos meios de produção é inevitavelmente alienada porque o capital é a quintessência da alienação e não existe sem esta. Somente a classe trabalhadora está na obrigação de adquirir consciência de classe, o que significa necessariamente deixar de ser alienada e tomar para si o mundo que efetivamente é seu.

O sistema burocrático integrado do ultraimperialismo estadunidense.

E então por que o capitalismo ainda não acabou? Precisamente por causa da emergência de uma burocracia que se desenvolveu com o objetivo de salvar o capitalismo de si mesmo, gerenciando-o por meio da manipulação da terceira forma de alienação da civilização burguesa, a da divisão social internacional do trabalho alienado. Lênin, em Imperialismo: etapa final do capitalismo, analisou de forma consequente o perfil dessa burocracia, associando-a à emergência do capital monopólico – é a burocracia imperialista.

E o que é o capital monopólico? Antes de tudo, antes de ser o capital privado dos grandes trustes, antes de ser o capital bancário inseparável do capital industrial, é o capital do Estado monopólico imperialista ou do Estado, com sua superestrutura jurídica, militar, administrativa, dedicado a salvar o capitalismo de si mesmo, explorando a divisão internacional desigual do trabalho, a fim de saquear as matérias-primas e o trabalho dos povos.

Entretanto, na era do capitalismo liberal, dominado pela Inglaterra, o Estado pré-monopólio britânico tinha como parâmetro a Companha Britânica das Índias Orientais, fundada em 1600, tendo persistido até 1874, data que inaugurou não apenas o começo do surgimento do capital monopólico e assim a emergência do imperialismo, mas também a crise do sistema colonial capitalista e liberal inglês, que teve como grande êxito a derrota da China entre 1839 e 1860, usando como subterfúgio, para derrotar e humilhar o Império Celeste, duas guerras do ópio e a guerra religiosa, a de Taiping.

A partir de 1874, duas burocracias monopólicas, disciplinadas para manipular a divisão internacional do trabalho em escala planetária, iniciaram não apenas uma colaboração nos bastidores, mas também uma concorrência sem tréguas. Refiro-me à burocracia monopólica alemã e à norte-americana, vanguardas, no período, da administração de seus respectivos Estados monopólicos, com a vantagem da burocracia do Estado monopólico estadunidense.

E por quê? A primeira vantagem está relacionada, em diálogo com Michel Foucault de Nascimento da biopolítica, com fato de que a burocracia do Estado monopólico alemã ser ordoliberal e a estadunidense ser anarcoliberal. No primeiro caso, existia uma separação entre o Estado monopólico e os monopólios privados em formação. No segundo, por sua vez, já não há diferença alguma entre as duas instâncias, porque tudo se torna uma porta-giratória, não fazendo mais sentido sequer falar em capitalismo, em termos clássicos, com o protagonismo dos donos dos meios de produção, porque tudo é ao mesmo tempo superestrutura estatal e iniciativa privada.

A figura do filantropo, a começar pelas gerações dos Rockfeller, é exemplar nesse contexto. Afinal de contas, o que são um Bill Gates, um Jeff Bezos, Zuckerberg, Elon Musk? São empresários, donos de meios de produção? Sem a chuva de dólares do Federal Reserve, existiriam? Que função ocupam esses burocratas como agentes do ultraimperialismo estadunidense? E o que é afinal este último? É a prova cabal de que a lei do fim histórico e estrutural do capitalismo, o da tendência da queda da taxa de lucro, simplesmente é cientificamente verdadeira.

O capitalismo não funciona sem um Estado racista, de perspectiva colonial ou imperialista.. Rosa Luxemburgo deu um passo adiante de Marx, a propósito. Em A acumulação do capital retomou o tema da crise estrutural do capital, esse alienado ao quadrado, para argumentar acertadamente que a civilização burguesa não duraria um dia sequer, se tivesse que depender apenas da extorsão do tempo de trabalho do operário para extrair o mais-valor e, por tabela, o lucro.

Para a espartaquista, a acumulação primitiva do capital não o antecede apenas, como asseverou Marx, porque a rigor é sua regra geral, transversalmente. Sem o sangue dos povos e o saqueio da natureza o capitalismo simplesmente, alienadamente sólido, desmancharia no ar. É por isso que a civilização burguesa, em seu período de dominação europeia, nunca dependeu apenas de si, tendo conseguido desenvolver suas forças produtivas à custa do sistema colonial europeu e, portanto, da África, da América Latina, da Ásia, Oceania.

As duas guerras mundiais do passado século foram o resultado trágico do último suspiro do capitalismo, gerenciado pela burocracia europeia, inapta para garantir a acumulação ampliada do capital porque se concentrou em gastar energia para conter as lutas de classe que ocorreram no interior da Europa. EUA, por sua vez, não conheceram lutas de classes internas ( a não ser episodicamente), pois a anteciparam, controlando-as com antecedência.

Para analisar esse último argumento, o diálogo com o filósofo das modernidades europeia, estadunidense e latino-americana, Bolívar Echeverría, é imprescindível. Em seu livro Crítica de la modernidad capitalista, o teórico equatoriano descreveu a modernidade estadunidense como uma espécie de metamodernidade ou modernidade da modernidade europeia, pois se desenvolveu ocupando sempre uma posição de observadora privilegiada de tudo que ocorria na Europa, com dois objetivos entrelaçados: 1. Evitar que a agitação das lutas de classe europeias, como a Revolução Francesa de 1789, as revoltas populares de 1848, a Comuna de Paris de 1871, dentre outras, ocorressem ou influenciassem a classe operária norte-americana; 2. Manipular as contradições e conflitos interclasses da Europa para superá-la no âmbito da concorrência capitalista, assumindo, assim, a hegemonia da gestão anarcoliberal do capital mundialmente estabelecido, o que efetivamente tornou-se possível após o fim da Segunda Guerra Mundial.

O ultraimperialismo estadunidense, sendo a metamodernidade, é também o metaimperialismo europeu. Emergiu e se tornou hegemônico salvando o capitalismo de si mesmo, ao se transformar em metacapitalismo, posição alcançada por meio de superestrutura burocrática, ao mesmo tempo militar, econômica, política, cultural, acadêmica.

As duas guerras do ópio, assim como a guerra religiosa de Taiping, por meio das quais a Inglaterra conseguiu submeter a milenar China, no século XIX, são as duas inspirações fundamentais de EUA para submeter a humanidade, expandindo-as de tal modo que tudo, qualquer coisa, tenda a se transformar em cavalo de Troia de ópio (logo, de alienação) e de guerra santa, manipulando e editando sem cessar religiões, seitas, crenças, valores, identidades.

As duas guerras mundiais do passado século foram um grande negócio para os EUA, garantindo-lhes a reprodução ampliada de seu Estado monopólico, para, antes do final da Segunda, com o Acordo de Bretton Woods de junho de 1944, tornarem-se de fato o centro do sistema financeiro mundial, tendo o dólar como moeda de referência, ao mesmo tempo de troca e de reserva.
Com isso, apenas com isso, com o dólar como moeda de troca e de reserva, puderam finalmente comprar o trabalho dos povos, impondo o seu próprio modelo de capitalismo, à sua imagem e semelhança: o capitalismo estilo Pentágono, devotado a impor a reprodução ampliada de seu capital por meio de golpes, guerras, saqueios, acumulação por despossessâo, sempre sorrindo para a foto, como se fora o justo, o civilizado, o democrático, o correto, o ético, o herói de seu sistema integral de publicidade e, assim, de mentiras.

E não bastasse isso, moldou instituições ditas internacionais como cavalos de Troia de sua hegemonia, como tem sido o cavalo de Troia ONU, OMC, FMI, BM, OEA, OMS, União Europeia, OTAN, Tribunal de Haia, FEM, Bancos Centrais, espelhando-as nos fluxos sem fim e sem teto do dólar nas alturas, ao mesmo tempo opiáceo e religião da humanidade, ancorado no “I am” de sua indústria cultural, igualmente “sem teto” para mentir, tergiversar, editar, reeditar, transformando-se no centro mundial de produção de fetichismos e, assim, de alienações.

Se nem tudo que reluz é ouro, por outro lado, tudo que a superestrutura burocrática do anarcoliberalismo ianque toca torna-se inevitavelmente cavalos de Troia, como são seus cavalos de Troia identitários, esses novos marines fetichizados como militantes negros, homoafeticos, femininos. Sem contar os cavalos de Troia teóricos, como multiculturalismo, estudos culturais, pós-colonialismo, decolonialismo, ancestralidadade, usados como referências inclusive e até sobretudo para estabelecer intercâmbios acadêmicos de sul para o sul.

Por exemplo, não é incomum, no contemporâneo, que o campo teórico designado como ancestralidade seja a referência epistemológica para o intercâmbio acadêmico entre o Brasil e a África, sem, supostamente, a presença estadunidense. Afinal, a função dessa superestrutura mundial do ultraimperialismo, estilo cavalo de Troia, inclusive teórica, não é outra senão esta: sugerir que tudo parta da gente, como ato de vontade própria, como se não fosse made in Usa, embora, em um campo teórico como o citado domine as seguintes palavras de ordem do sistema de alienação estadunidense: fuga da história e, assim, da luta de classes, sobretudo a da soberania nacional, a soberania dos povos, em nome de uma fetichista terra prometida romantizada, ancorada em um passado remoto anterior ao sistema colonial europeu.

E o sistema colonial, capitalista e ultraimperialista estadunidense, não vem ao caso? Sim, vem, empurrando-nos, de modo sub-reptício, para a terra prometida ancestral, no contexto em que o inimigo passa a ser a China, por trazer consigo um processo de industrialização que deve ser combatido em nome do respeito à natureza. Conveniente, não? Stay-behind– e nessa posição tudo se torna conveniente!

Esse sistema cavalo de Troia integral do ultraimperialismo ianque funciona como uma sociedade cavalo de Troia ocupando lugar da sociedade real, historicamente situada, dos povos. Se o que está em jogo, com a emergência do imperialismo, é a manipulação da divisão social desigual e internacional do trabalho, para empurrar a reprodução ampliada do capital para frente, como funciona a tecnologia de poder do ultraimperialismo ianque no interior dessa terceira forma de alienação do capitalismo?

Funciona retomando a divisão do trabalho que separou as cidades dos campos. Há no sistema de cavalo de Troia integral ianque os cavalos de Troia do tipo urbano, criados no interior do Partido Democrata e das instituições globalistas, como a Comissão Europeia e o Fórum Econômico Mundial; e os cavalos de Troia do Partido Republicano, de reedição sem teto do faroeste como cavalo de Troia dos neonazistas ucranianos, dos bolsonaristas no Brasil, do Estado Islâmico na Eurásia, da extrema direita e do fundamentalismo religioso por todo o planeta, incluindo o neopentacostalismo, em que cada Igreja funciona igualmente como cavalo de Troia dedicada à guerra santa de expulsar o demônio da soberania nacional plena.
E como a divisão social do trabalho está relacionada com as forças produtivas e, assim, também, com o avanço da ciência e das tecnologias, na época da automação, da digitalização, da nanotecnologia, da biotecnologia novos cavalos de Troia estão se conformando, no front de batalha contra a humanidade, inaugurando a era da colonização genética de todos os seres vivos do planeta.

Não podemos subestimar esse novo cenário. A atual pandemia é também o seu atual teatro de guerra e, se o mundo realmente existente é este do ultraimperialismo ianque, o da produção planetária de fetichismos urbanos e camponeses, respectivamente opiáceos bélicos e guerras santas, não nos resta outra alternativa, retomando Dante Alighieri, agora do Canto III de “Inferno”, senão esta: “Deixai toda a esperança vós que entrais” (ALIGHIERI, 1979, p. 27).

Parece que nesse quesito Rússia novamente é a vanguarda, mais que a China, razão por que a seguinte frase de Putin significa o começo do fim de toda e qualquer esperança nos cavalos de Troia do Ocidente: “O barco já partiu e não há mais retorno”.
Como líder do mundo multipolar, que é e deve ser cada vez mais, aprenda isso, Lula: abandone toda a esperança no Ocidente, estendendo esse abandono total da esperança aos líderes europeus, pois são os “pecadores” do oitavo círculo de A divina Comédia de Dante; os dos falsários, hipócritas e corrompidos, estando a serviço do sistema burocrático do nono círculo: o do ultraimperialismo estadunidense, o mesmo que acaba de condenar Cristina Kirchner a 6 anos de cadeia, tornando-a inelegível para sempre, assim como o mesmo que acaba de destituir Pedro Castillo no Peru, mantendo-o no cárcere.

E tudo funciona em tempo real, com a Internet como cavalo de Troia, não sendo por acaso que assim Wikipédia descreva o líder popular peruano: “José Pedro Castillo é um professor, líder sindical e político peruano que serviu como presidente do Peru de 2021 a 2022”.

Sim, “tudo escrito e prescrito”, para lembrar uns versos de Drummond, “em nebuloso estatuto” de um mundo regido por regras.
Quais?

Referências:
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Rio de Janeiro: Otto Pierre Editores, 1979.
ECHEVERRÍA, Bolívar. Crítica de la modernidad capitalista. La Paz, 2011.
ENGELS, Friedric; MARX, Karl. A ideologia alemã. Trad. Rubens En­derle, Nelio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
_____. A sagrada família. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003;
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
LENIN, Vladimir Ilytch. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1979.
LUXEMBURO, Rosa. La acumulación del capital, Ciudad del Mexico: Editorial Grijalbo, 1967.
MARX, Karl. KARL, Marx. O 18 de Brumário e Cartas a Kugelmann. Trad. Leandro Konder e Renato Guimarães. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
______. Contribuição à crítica da economia política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
———. Pósfácio à 2º Edidição. In.: O capital. Livro I. Trad. Rubens En­derle. São Paulo: Boitempo, 2017, p.91.
______. O capital. Livro III. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitem­po, 2017.
SOARES, Luis Eustáquio. A sociedade do controle integrado: Franz Kafka e Guimarães Rosa. Vitória: Edufes, 2014.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução Álvaro Pina e Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2010.

[1] Um operário da educação brasileira.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

O «neoliberalismo progressista» e a esquerda conservadora * Nuria Alabao/NUSO

O «neoliberalismo progressista» 
e a esquerda conservadora
Nuria Alabao/NUSO

Alguns setores progressistas sentem nostalgia pela velha política de classe diante dos novos movimentos feministas e identitários. Será esse realmente um posicionamento de esquerda para transformar algo do mundo atual?

É habitual que surjam discursos conservadores na esquerda em tempos de fragilidade das lutas sociais. Eles estão sempre presentes, mas só ganham relevância quando perdemos força. Se as praças estão tomadas ou há manifestações, okupações ou greves – em tempos de força –, quem vai se preocupar em discutir o sujeito do feminismo ou se o ativismo antirracista ou lgtbi+ é «neoliberal»? Infelizmente, estamos em meio a um desses momentos de discussões abstratas de interesse questionável.

Uma delas é a que faz referência ao termo «neoliberal» como adjetivo contra quase qualquer coisa, utilizado para desqualificar lutas que incomodam porque não são compreendidas ou não podem ser lideradas, como aríete em guerras de poder internas de partidos ou simplesmente para se posicionar como o ou a influencer da moda. Assim, o direito à identidade de gênero acaba sendo neoliberal, e as lutas antirracistas ou o feminismo mais transformador, «um conglomerado de postulados pós-modernos das identidades». Tais argumentos são usados muitas vezes para deslegitimar esses movimentos, culpando-os de «deixar de lado a política de classe» ou «os verdadeiros interesses do povo». Eles são usados dessa forma tanto pela extrema direita como por determinadas vertentes da esquerda conservadora, um tanto fascinada pelos êxitos – limitados – da ultradireita, interpretados como consequência do «abandono da classe trabalhadora». Para ambos, as questões materiais não importam, embora alguns se declarem marxistas; tudo acontece no mundo das ideias. Abordaremos aqui algumas dessas questões deixadas de lado.

Não se sabe bem o que significa o neoliberalismo. É como se os inconvenientes do capitalismo tivessem começado na década de 1980 com a vitória neoliberal, ou talvez em 1968, com o nascimento dos movimentos sociais antiestatais. Parece que todo capitalismo prévio foi uma espécie de festa para os despossuídos, ou talvez tenha existido uma era dourada na qual os trabalhadores e o capital convivessem em harmonia. É certo que, para alguns nostálgicos das esquerdas, o capitalismo do Estado de bem-estar é o máximo a que podemos aspirar, o que só pode ser fruto de uma idealização. Em que países, por quanto tempo, para que faixas sociais funcionou esse Estado, e quem dele ficava de fora? Na Espanha, por exemplo, só podemos falar de um Estado de bem-estar subdesenvolvido; em outros países, como os Estados Unidos, a classe trabalhadora negra foi excluída desse mundo de estabilidade. E, afinal, não foi tudo isso construído à custa da sujeição e da subordinação das mulheres nos lares a seus patrões maridos ou pais?

Não se pode esquecer que, como explica Melinda Cooper em Family Values [Valores familiares], em muitos países ocidentais, a ordem socioeconômica posterior à Segunda Guerra Mundial foi articulada em torno do chamado «salário familiar fordista» – o homem provedor de sustento para mulher e filhos –, que funcionou como um mecanismo para a normalização das relações sexuais e de gênero, e que precisamente contribuiu para estruturar a organização do trabalho a partir das divisões de raça, gênero e classe1. No caso dos eua – a Europa viveria algo parecido com as migrações provenientes das ex-colônias –, isso foi conseguido excluindo os homens afro-americanos do salário familiar e relegando as mulheres afro-americanas à mão de obra barata e doméstica em lares brancos ou na agricultura. É preciso fazer com que os nostálgicos de outro ideal se lembrem destas questões: o sujeito trabalhador de fábrica, branco e com a mulher em casa. Eles efetivamente poderiam culpar o feminismo por contribuir para liquidar essa ordem com sua luta contra o modelo do homem provedor e da família fordista, sempre que considerem que as mulheres deveriam retornar a seu antigo papel e que essa ordem deveria ser recuperada à margem do nível de vida de migrantes e pessoas racializadas.

Muito se fala agora do «neoliberalismo progressista»2, uma expressão que Nancy Fraser utiliza para se referir a um tipo de feminismo institucional hegemônico nos eua que poderia ser exemplificado na figura de Hillary Clinton. Alguns utilizam esse conceito para deslegitimar todo o feminismo – ou todas as lutas lgtbi+ – ignorando contextos sociais e históricos, bem como disputas de classe dentro desses mesmos movimentos. Assim, essas mobilizações seriam irrelevantes e até mesmo contraproducentes, pois se adaptam bem «ao novo espírito do capitalismo», e o neoliberalismo seria progressista no sentido de ser capaz de absorver toda luta política. É evidente que se pode e deve criticar os partidos socialdemocratas que separaram as políticas de reconhecimento – de direitos das minorias – das políticas de igualdade material, embora a linha que as separem nem sempre seja tão clara. Digamos que se pode e deve apontar aquelas que, enquanto se denominavam feministas, apoiavam as políticas econômicas neoliberais.

Contudo, os movimentos sociais existentes não podem ser considerados culpados pela incapacidade coletiva de se opor ao avanço do neoliberalismo. Não se pode responsabilizar o feminismo, as lutas lgtbi+ ou o antirracismo pela fragilidade dos sindicatos ou pela desarticulação do movimento trabalhador (que foi um processo histórico complexo e que envolveu vários fatores)3. Não significa, no entanto, que não se possa articular uma crítica às derivas identitárias de alguns desses movimentos ou a suas políticas de demanda por integração estatal, mas, em qualquer caso, isso implicaria análises mais aprofundadas, e não uma impugnação total sob o risco de jogar fora a criança com a água suja do banho. Os direitos obtidos em questões que alguns chamam «de representação» foram fruto de árduas mobilizações. Muitos desses movimentos também tinham um cunho fortemente anticapitalista, mas sua derrota é o sinal dos tempos.É preciso lembrar mais uma vez que a classe trabalhadora existe em processos de auto-organização, e não simplesmente a invocando como palavra. Ela não existe como puro discurso. E a classe trabalhadora como categoria sociológica hoje na Europa é precisamente racializada, plural, repleta de pessoas lgtbi+, e migrantes e mulheres ocupam as posições mais exploradas4. Somente ignorando esse fato é possível continuar invocando mentalmente a «verdadeira classe» e seus verdadeiros interesses. Novamente, apenas aqueles que se auto-organizam, lutam e falam por si mesmos podem definir quais são esses interesses.

O neoliberalismo é progressista?

O neoliberalismo triunfou na década de 1980 sob o comando de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que uniram sua preocupação pela família e pela tradição aos elementos mais radicais do liberalismo. O neoliberalismo era apresentado teoricamente como uma forma revolucionária capaz de abalar os pilares de toda a sociedade – e de fato o fez –, mas também como uma doutrina e uma prática perfeitamente compatíveis com a preservação da família e dos valores tradicionais. Mesmo antes desse casal maléfico, o neoliberalismo já era experimentado sem obstáculos durante a ditadura de Augusto Pinochet no Chile. Nesse país, a questão não é se o neoliberalismo era progressista; ele nem sequer era democrático. De fato, a democracia para o neoliberalismo tende a ser uma metáfora do mercado, e a liberdade é concebida como liberdade econômica. O mercado é a expressão material e concreta da liberdade. Não há outra possível. Tudo mais é secundário.

Precisamente, como explica Melinda Cooper, o individualismo neoliberal combina perfeitamente com a defesa da família tradicional, que funciona como estabilizador social, espaço de controle social e de subordinação da mulher, crianças e pessoas lgtbi+, e na qual se reproduz grande parte da violência patriarcal5. O trabalho de Cooper, que se concentra nos eua, mostra como os cortes neoliberais do gasto público em educação, saúde e bem-estar se basearam no pressuposto de que as relações familiares substituiriam esses serviços públicos a partir da dívida intergeracional. Nesse sentido, os neoliberais não estavam tão distantes dos conservadores em suas propostas, ainda que, diferentemente destes – ou da ordem fordista –, sua proposta não estivesse sujeita a costumes sexuais disciplinares específicos ou a uma defesa da família heteronormativa.

Os laços familiares são apresentados como imprescindíveis para absorver os choques e a indeterminação provocados pelo livre mercado, já que se pretende desmontar qualquer suporte de bem-estar enquanto se liberaliza – precariza – o trabalho e os bens básicos são deixados à mercê da «mão invisível». Assim, o neoliberalismo utiliza a família para reduzir funções do Estado. De fato, depois da crise de 2008 com seus cortes e a austeridade, a saída neoliberal, a família se tornou mais importante para a sobrevivência das pessoas.

Lembremos que a família é essa instituição sem a qual não haveria trabalhadores prontos para serem explorados – mulheres que reproduzem a mão de obra – e que ela é fundamental para reproduzir a estrutura de classes. Além disso, na ordem neoliberal, a origem social é cada vez mais importante para as possibilidades econômicas e de vida das pessoas. A herança é um mecanismo essencial, mas também a educação, os contatos, as possibilidades de endividamento, etc. O problema não é a família em si, mas o fato de não haver alternativas que ofereçam autonomia. Como destaca Cinzia Arruzza, apesar da multiplicação das identidades e práticas sexuais, e da maior visibilidade das pessoas trans e dos estilos de vida que não se enquadram no gênero – assim como sua mercantilização e promoção como nichos de mercado e novas fontes de lucro e destinos de investimento –, a família continuou ganhando peso, juntamente com a sujeição que isso implica. Portanto, o neoliberalismo não só não ataca essa instituição fundamental para o sustento da ordem social, mas também a reforça ao fazer recair mais peso sobre ela6.

Sendo assim, material e constitutivamente no que mais importa para nós, o neoliberalismo tem pouco de progressista ou feminista, e os direitos das pessoas trans e o feminismo de classe não são neoliberais. O neoliberalismo é fundamentalmente um programa econômico que organiza a sociedade em torno do mercado, um mercado ordenado e impulsionado por um Estado incitado a administrar os serviços públicos mínimos; um Estado que deve facilitar que o mercado opere com máxima liberdade e administre as maiores áreas possíveis da vida. Nada disso contribui para a autonomia das mulheres ou das pessoas trans. Como proposta econômica ou de organização social, isso é compatível tanto com regimes «progressistas» ou de direitos como com a extrema direita de Jair Bolsonaro no Brasil ou de Donald Trump nos eua.

A crítica necessária para avançar é um pouco mais complexa e deve ser tripla para ter eficácia. Por um lado, ela deve denunciar o neoliberalismo e sua guerra contra as possibilidades de vida, mas também ser anticonservadora – à direita e à esquerda –, contra a fascinação que a extrema direita desperta em alguns e suas críticas ao capitalismo baseadas na nostalgia da família, da homogeneidade étnica ou da nação. Nenhuma nostalgia nos tornará iguais e livres. Finalmente, ela deve ser profundamente anti-identitária quando essas identidades dificultem a articulação das frentes amplas de que necessitamos para nos opor ao poder do capital.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

NEOLIBERALISMO À DIREITA E À ESQUERDA * María Alejandra Díaz

 NEOLIBERALISMO À DIREITA E À ESQUERDA

María Alejandra Díaz


Parece que alguns porta-vozes econômicos do alto governo concordam com o que Margaret Thatcher expressou nos anos 80 sobre "não há alternativa" assumindo como ela, que não faz muito sentido sonhar com uma mundo diferente com um sistema social, cultural e econômico diferente. E é que desde 2017 -pelo menos- ouvimos "não temos outra escolha, não há alternativa" para resolver nossa crise induzida e provocada. Uma fatalidade que nos vendem sobre a impossibilidade de nos organizarmos de outra forma, convertendo -sim- quem decide propor ideias, levantar alguma crítica ou se opor abertamente a elas em: traidores, saltadores talanqueras, que não entendem a dimensão do tragédia devido ao álibi de medidas coercitivas unilaterais e seus efeitos.


Ninguém em sã consciência poderia negar os efeitos perversos de tais sanções unilaterais e ilegais. Mas desde 2017, um grande grupo de venezuelanos optou por propor, depois de uma longa discussão, todo um plano para a recuperação da economia, sim, um plano fora do mantra neoliberal de "não há alternativa" e fora da lógica dos autômatos zumbis do dogma; e o que aconteceu? Nada pa'lante com o outro plano.


Vamos rever a doutrina a esse respeito, para nos posicionarmos sobre nossa afirmação. O realismo capitalista (Fischer) propõe que o Estado reduza seu tamanho e se administre como uma empresa, um negócio, privatizações como soluções, livre concorrência e livre mercado, desregulamentação, desburocratização (demissões em massa em empresas públicas e estatais), congelamento coletivo negociação, controle rígido da emissão de moeda entre outros princípios. O Estado não pode virar “babá” nem está aí para subsidiar ou subsidiar “vagos”, portanto, o social não existe, existem indivíduos, principalmente consumidores e empresários, tomando para si Jeremiah Benthan, pai do utilitarismo: maximização do prazer , em termos econômicos aumentos de lucros e lucros. Isto é o que estão orando os entreguistas!


Crenças arraigadas, como reflexo da submissão ideológica e do apagão epistêmico de grande parte dos tomadores de decisão nas questões econômicas e políticas que governam o país.


São produtores e reprodutores do discurso econômico e cultural neoliberal, executores extraordinários dos planos daqueles que dizemos serem nossos inimigos, completando o que Jeffrey Sachs levantou em sua terapia de choque e criticado por Naomi Klein. Representantes e defensores dos artefatos ideológicos culturais do neoliberalismo, do realismo capitalista e seu discurso de "sem futuro". E com esta ideia estendida à população anulam o futuro, a mobilidade social, condenam-nos a não imaginar o novo, recriando uma sociedade que morre vivendo como zombies, consumidores dos petrificados fetiches da cultura neoliberal.


Uma amostra dessa reprodução estúpida são os quadrinhos, instrumentos da maquinaria desconstrutiva neoliberal. Trocamos Bolívar, Piar, Zamora, por cópias feias dos super-heróis do inimigo, criando e instalando no inconsciente, no imaginário de nossa população, especialmente daqueles que se autodenominam anticolonialistas de cafeteria, o pior discurso de alienação cultural e mental.


Este realismo capitalista foi retomado pela "esquerda progressista" e sua vitória foi selada quando Tony Blair, o Partido Trabalhista e a chamada social-democracia internacional capitularam a esta visão. Uma esquerda rendida, de como um vampiro vulgar bebe o sangue do povo, alguns mortos-vivos, que revivem um episódio de Resident Evil ou The Walking Dead, cadáveres insepultos em reflexões impotentes, retórica vazia e incoerência entre fala e ação, esvaziamento ético de toda virtude, restabelecendo com seus esforços o neoliberalismo selvagem, o mesmo que Chávez mandou para o inferno.


Eles impõem uma ontologia empresarial dos negócios -nihiliberalismo- onde a única realidade real é o negócio e, portanto, toda a sociedade deve ser gerida como uma empresa, ou seja: custo/benefício/produtividade marginal (economismo puro e duro), fetichização da mercadoria, reificação da realidade e alienação da dixit do trabalho. Justificam as consequências e o sofrimento de bilhões, dizendo-nos que a situação é objetivamente pior (naturalizando a catástrofe) mas “não há alternativas” porque este é o melhor mundo possível.


Contrário a esses dogmas, concordamos com Fisher quando ele nos adverte que "um ataque sério ao realismo capitalista só pode ser tentado se for exibido como incoerente e indefensável; em outras palavras, se o realismo ostensivo do capitalismo for mostrado como a completa oposto do que diz ser" levando-nos a um verdadeiro estado de impotência e tornando-se uma profecia auto-realizável: jovens e menos jovens que têm certezas e sabem que nada podem fazer para mudar as coisas e por isso nada fazem para mudar neles, portanto, tudo continua igual, porque os sonhos são cancelados, havendo um estado de impotência social coletivizada.


Nós nos recusamos a ficar parados e sem esperança. Ora, todo esse discurso instalado se desfaz, quando analisamos os efeitos, por exemplo, dos danos sociais, culturais, espirituais, ambientais, dos efeitos corrosivos e devastadores sobre a saúde mental da população, nos adoecendo para produzir lucros empanturrando nós mesmos com remédios, muitas vezes inúteis, imbuídos de um individualismo obrigatório e da privatização da doença, jovens vivendo impotentes, perpetuamente frustrados, fugindo da realidade, com drogas e um hedonismo permanente e inevitável; desapontados e atordoados porque não têm como realizar seus sonhos.


Outro sintoma inequívoco desse fracasso é a suposta redução da burocracia e com ela do tamanho do Estado e de seus objetivos: o que vemos mesmo são professores que vendem hortaliças para sobreviver, afetando a qualidade da educação como pilar do desenvolvimento e do verdadeiro crescimento , trabalhadores que exercem as funções de outros três que se demitiram para ir para o "empreendedorismo", médicos que trabalham em três lugares para poder "sobreviver", migrações massivas por falta de emprego e oportunidades, flexibilização laboral, enfim, um desfinanciamento da saúde, da educação e de tudo quando o espaço antes era ocupado por um Estado responsável, forte e soberano.



Tudo isso não passa de uma série de mentiras porque quando os empresários privados -banqueiros- faliram em 2008, foram os Estados -americanos e europeus- que acabaram subsidiando essa falência colocando dinheiro de todos os contribuintes, com o lema imoral " eles são grandes demais para falir."


Como indica Giulio Palermo em seu livro O Mito do Mercado, "desenvolvimento sem inflação" coincidindo com salários estagnados é apenas o triunfo do capital. A recuperação do emprego à custa de condições de trabalho mais duras, maior precariedade e menor protecção (com a produtividade sempre a crescer) apenas exprime um aumento da taxa de exploração: se numa família antes só o homem trabalhava, agora trabalham dois ou três dos seus membros e o padrão de vida é sempre o mesmo porque, além de reduzir os salários reais, com a redução dos investimentos públicos, os serviços que antes ficavam a cargo do Estado, agora temos que pagar em moeda forte”


Hoje um reflexo fiel da aplicação dos princípios rigidamente estabelecidos da teoria monetarista neoliberal que o realismo capitalista desenvolve. No entanto, algo deve ser dito em favor daqueles que hoje desgovernam: eles não comandam a si mesmos. Bem, além da retórica anti-imperialista , essa liderança "cega, surda e muda" de Shakira optou por transformar o capital no centro dos benefícios econômicos, para tato com fatores internacionais e não podem sair do plano -receita neoliberal- ditada por bancos internacionais, transnacionais, fundos de investimento e obrigacionistas do anglo-sionismo holandês, suíço e britânico. Além disso, não se comportam como revolucionários, nem mesmo como venezuelanos, são zumbis a serviço da máquina de guerra anglo-saxônica que nos invade impiedosamente.


Obviamente, esse capital é um parasita abstrato, um vampiro gigantesco, um criador de zumbis e a carne fresca onde fincam suas presas, são os milhões de trabalhadores empobrecidos e precários. E fazem tudo isso em momentos de inegável crise do neoliberalismo, quando ele se arrasta. Enquanto isto acontece, os decisores económicos e políticos dão-lhe oxigénio e muitos dos que se diziam opositores ao sistema perverso acabaram por se adaptar às próprias coordenadas que ele impõe, entregando a nossa soberania monetária e económica e provocando uma acumulação original violenta de capital, confisco da riqueza social e transferência massiva de recursos para o capital fiduciário. Tomar partido do capital fiduciário implica inclinar a balança no conflito distributivo em favor dos patrões e não do trabalhador (S. Amin, M. Hudson)


Claro que é uma guerra, uma guerra do capital contra o trabalhador. Se nos consideramos revolucionários anti-imperialistas, para quem vamos nos inclinar? Deve ser para o trabalhador. Estamos conseguindo? Eu creio que não.


Como é que sabendo da situação precária que gerariam as sanções e a diminuição das receitas petrolíferas, como lhe pergunta Miguel Ángel Contreras na conferência proferida sobre o baptizado do livro de Malfred Gerig "A Longa Depressão Venezuelana" se insistiu no pagamento sem brincadeira da dívida externa pelo valor exorbitante de mais de 71.700 milhões de dólares? Como é que, sabendo disso, você paga aqueles que o estão sancionando e travando uma guerra financeira contra você? Parece uma decisão política e econômica sem precedentes.


E esta incompreensível decisão política que prejudicou o país e nos deixou nesta situação não tem a ver com aqueles determinantes de longo prazo que hoje nos oprimem? Porque se os ciclos de Kondratief forem verdadeiros, você como um bom pai de família e bom governo deveria ter feito como José "economizar para tempos difíceis" é simples. Por que não? E depois criaram as condições para poder -com alguma justificação- aplicar medidas inconstitucionais e medidas econômicas neoliberais, vendendo-nos aliás o dogma do "não há alternativas?"


Em meio a esse drama nacional e entendendo o tamanho da crise, mas também pensando nas oportunidades, acreditamos que existem alternativas e um destino comum pode ser alcançado desde que seja com esforço coletivo e sabendo que não há milagres , nem há um Messias. que eles valem


Devemos assumir coletivamente um novo propósito que nos permita transcender. E isso é obra de todo um povo que se levanta, como heróis coletivos de uma geração futura. Sobretudo às vésperas de um novo mundo multipolar que se desenha diante de nós, com as definições geopolíticas que determinarão nosso papel: peões, servos ou atores.


Todos nós temos que lutar, nós queremos:


Soberania e auto sustentabilidade, um sistema econômico moderno baseado na auto suficiência que nos permita construir prosperidade comum, um povo saudável, desenvolvimento industrial e científico-tecnológico líder mundial, educação para todos e em todas as áreas, com foco no desenvolvimento produtivo de abrangência nacional, industrialização, desenvolvimento urbano, desenvolvimento da comunicação e da informação e desenvolvimento rural integral de alto desempenho, sistemas de governo sistemáticos de alta participação social e compromisso comum, transparência contábil, soberania cultural, gozo comum de uma vida feliz e bela, maior renda per capita, baseada no desenvolvimento criativo e produtivo de abrangência nacional, serviços públicos de qualidade para todos os povos, enfim, Pátria para nossas futuras gerações.


terça-feira, 20 de dezembro de 2022

O POVO TEM A PALAVRA * José Toledo Alcalde / Con Nuestra América

 O POVO TEM A PALAVRA

José Toledo Alcalde / Con Nuestra América


Quando os cachorros não latem, eles lambem. Dona Boluarte

Estálá porque os grupos de poder assim o decidiram, como com Vizcarra e todos os anteriores, e será expectorado quando tossirem.


A célebre frase: "os latidos estridentes mostram que são um sinal de que estamos cavalgando" atribuída ao poema Kläffer (Ladran) de Goethe (1808), outras vozes os atribuem ao "maco de Lepanto", costuma ser apontado as críticas que surgem na estrada muitas vezes associadas a um sinal de progresso e conquistas. Na situação atual, onde o presidente Pedro Castillo passa a noite sob custódia na Prefeitura de Lima, e na hora da luz a ex-vice-presidente Dina Boluarte foi declarada presidente da República, parece que os cachorros que latiam no passeio de Castillo hoje licks pródigos em Boluarte.

 

VÍTIMAS DO GOLPE NO PERU

Muito prematuro para tirar conclusões. Existem mais perguntas do que respostas que motivam a situação atual; ainda mais tentando aproximar áreas transfronteiriças. Suspeitamos que um dia antes da mensagem de Castillo fechando o Congresso, a Subcomissão de Acusações Constitucionais (SAC) do Peru decidiu por maioria, 13 votos a favor e 8 contra, apresentar a denúncia contra Boluarte, qualificando-a para o exercício de cargo público. conforme anunciado aos quatro ventos pelo porta-voz corporativo diário Peru21. Por ocasião de sua posse, a senhora Boluarte assinalou: Como todos sabemos, houve uma tentativa de golpe de Estado, marca promovida pelo senhor Pedro Castillo, que não encontrou eco nas instituições da democracia e na na rua, este Congresso da República, em resposta ao mandato constitucional, tomou uma decisão e é meu dever agir em conformidade.

 

Ontem eram eles que queriam atingir Castillo e inclusive o ex-vice-presidente, hoje o novíssimo presidente cumpre ao pé da letra o “mandato constitucional”. Sejamos claros, dona Boluarte, quando é que o Congresso está fora da ordem constitucional e quando está dentro? Quando Boluarte estava na guilhotina acusado de enriquecimento ilícito e às portas da inabilitação por dez anos para o exercício de cargos públicos, o congresso foi "golpista" e "antidemocrático", em 24 horas e como efeito de uma "conversão democrática " Boluarte submeteu-se à autoridade do Poder Legislativo. Deixaram de ser “antidemocráticos” e “golpistas” tão rapidamente?

 

A senhora Boluarte disse há alguns meses: Estão tentando forçar uma interpretação do artigo 126 da Constituição e aparentemente o controlador da República estaria jogando contra a parede com esses parlamentares antidemocráticos que querem dar um golpe de estado contra um governo legitimamente eleito... Não vou entrar em debate político sobre esse assunto. Apenas expresso ao país que este plano está em andamento e que com a força telúrica que minha sagrada terra de Apurima me inspira, irei me opor a esta marca com a força da razão e da lei.

            

O monopólio midiático do Grupo El Comercio, assim reconhecido pela OEA, passou de inquisidor a anjo da guarda do novo presidente da República. A direita e a extrema direita, em todas as suas expressões, aplaudem o ocorrido. Na verdade, e tendo a mídia como único informante, é difícil encontrar alguém que não queira ver Castillo na parede, que reconheceu ser vítima dos erros de sua falta de experiência. Acho que se amanhã Castillo for privado de sua liberdade perpetuamente, as empresas de pesquisa dariam um índice de aprovação de 99,9%. E é assim. Cidadãos comuns freneticamente entrevistados lançaram sobre Castillo os epítetos mais rudes imagináveis, assim como líderes de opinião de direita dentro e fora do país. Com certeza as corporações mineradoras, financeiras e midiáticas comemoram o evento como a OEA através de seu secretário que aplaudiu o ocorrido e quando a direita e a OEA lamber, desculpa aplaudir e não latir com certeza será porque aquele cachorro raivoso traz e mais cedo ou mais tarde vai morder.          

 

Castillo cometeu erros? E muitos reconhecidos por ele. Você cometeu atos de corrupção? Muitos dos indícios estavam sob investigação e seu ataque protegido com imunidade blindada, criado pelo governo de facto de Fujimori, não permitia avançar nele. Como ficou evidente, não havia outro jeito senão esvaziá-lo antes de mudar os regulamentos que blindam o chefe do Executivo. Após uma caçada inquisitiva e sem o apoio de seus principais aliados políticos, ele foi imediatamente preso e falsificado. Talvez ele acreditasse que poderia jogar as duas mãos, por um lado, sorrindo para os grupos de poder com ministérios e outras piscadelas, e por outro lado, tentando fazer a revolução legislativa (trabalhista, educacional, tributária, reforma agrária, etc. ), sem pensar que mais cedo ou mais tarde seria expectorado ainda mais sem ter o apoio da maioria das Forças Armadas como foi demonstrado hoje.

 

Ao que tudo indica, crônica de uma derrota anunciada. Golpes como os perpetrados contra Rafael Correa, Manuel Zelaya, Fernando Lugo, Dilma Rousseff, Lula ontem e hoje, e agora contra Cristiana Fernández, com 6 anos de prisão e muitos outros.

 

Castillo chegou ao poder com uma agenda de transformação e uma vez na cadeira presidencial adoçou seu discurso como o da Constituinte, divorciou-se do partido que o levou ao Palácio, mais de 70 cargos ministeriais trocados em 13 meses, parentes e pessoas próximas à pasta presidencial sob escrutínio por supostos casos de corrupção, foragido, em prisão preventiva ou confessando supostos envolvimentos criminais do ex-presidente com supostos grupos do crime organizado.

 

Estamos diante de dois cenários inusitados para o fechamento do Congresso: 1992 com Fujimori e 2022 com Castillo. A primeira blindada por grupos de poder, forças militares e organizações internacionais e a segunda abandonada por todos os citados. Um "golpe de Estado" consumado com os resultados desastrosos que conhecemos e uma tentativa de "golpe de Estado" não consumada com resultados que esperamos não sejam desastrosos como os da primeira experiência. Essa experiência nos deixa uma pergunta para um especialista em Direito Constitucional: quando fechar o Congresso, como ato constitucionalmente reconhecido, é golpe e quando não é?

 

E para tudo isso, onde está a voz do povo? Onde está a participação democrática do Soberano? Parece que, como sempre, há fios de poder que se movem por trás do trono e reconhecer isso não é descobrir água fervida ou ovos cozidos. A senhora Boluarte está lá porque os grupos de poder assim o decidiram, como com Vizcarra e todos os anteriores, e será expectorada quando tossirem. Como acaba de apontar Diosdado Cabello, em seu programa Con el mazo dando, o discurso de posse de Boluarte talvez tenha sido previamente redigido pelos próprios Estados Unidos, para onde seguramente viajará nas próximas horas para prestar seus serviços incondicionais (12/07/ 22). Desejamos, pois, que a senhora Boluarte desfrute de seus 5 minutos de glória, como a sexta presidente em seis anos, e observaremos sua capacidade política de acatar as opiniões de quem agora lambe as mãos, como a OEA, a Estados Unidos e grupos de poder. Amanhã eles não vão latir, mas vão mordê-la. Formato conhecido e denunciado à exaustão por Boluarte. É difícil não lembrar do aperto de mão que Castillo deu a Almagro, em setembro passado nos salões da OEA, com o aperto de mão que foi dado a Evo Morales e horas depois endossou o golpe desastroso. No final quem não foi eleito e eleito acaba mandando, ou não?

 

Os povos têm a palavra.