: uma crítica
marxista
David García Colín Carrillo 21/08/2020
Michel Foucault foi um destacado filósofo francês do chamado
pós-estruturalismo. Teve uma grande influência dentro da corrente pós-moderna
de esquerda, entre a esquerda acadêmica e entre os ativistas de diversos
movimentos, como o feminismo, o anarquismo e o neozapatismo. Muitos ativistas o
veem como um complemento e mesmo como uma alternativa ao marxismo. No lugar da
luta de classes, em que se baseia a política marxista, coloca “relações de
poder”; no lugar da luta para abolir a exploração, coloca a “resistência”; o
lugar do proletariado como sujeito revolucionário é ocupado por uma infinita
rede de lutas particulares e isoladas contra o poder; em vez do materialismo
histórico e do papel determinante das relações de produção, coloca-se o poder
determinante do “discurso” na configuração do poder. Acreditamos que as
proposições de Foucault de forma alguma constituem uma alternativa ao marxismo
e que ambos são irreconciliáveis, como a água e o azeite. Trataremos de mostrar
isso no presente artigo.
As confusas “relações de poder”
Foucault assinala que as relações humanas são determinadas por relações de
poder que se configuram historicamente. Afirma que:
“As múltiplas relações de poder atravessam, caracterizam, constituem o corpo
social; e estas não podem ser dissociadas, nem se estabelecer, nem funcionar
sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do
discurso”1.
Embora seja difícil encontrar uma definição precisa do que Foucault entende por
“relações de poder”, poderíamos dizer que são relações de subordinação e
domínio nas quais os participantes se enfrentam com diversas “estratégias de
poder” e sob diferentes “relações de força”. A definição é tão abstrata que
pode ser preenchida com qualquer um ou nenhum conteúdo de classe. Em outra
parte, sustenta que “o poder não é justamente uma substância, um fluido, algo
que brota disso ou daquilo, mas um conjunto de mecanismos e procedimentos, cujo
papel ou função e tema, ainda que não o logrem, consistem precisamente em
assegurar o poder”2. Uma formosa tautologia: o poder assegura o poder.
Para o marxismo, o poder, entendido como subordinação e domínio do homem pelo
homem, tem sua origem na exploração do homem pelo homem. Ambas as formas não
coincidem exatamente, mas se combinam. A exploração do trabalho alheio se
combinou e se reforçou com a opressão da mulher, com a opressão de outros
grupos sociais subordinados e mesmo com o racismo. As diversas formas de
exploração: despótica, escravista, feudal e burguesa – e dentro delas, cada uma
de suas formas histórico-concretas – configuraram, subsumiram e enfatizaram à
sua maneira as diversas formas de opressão no interesse da classe dominante. No
marxismo, não existe ambiguidade. Mais a frente regressaremos a este ponto.
Foucault concentrou sua atenção no estudo de como se manifestam as relações de
poder em espaços como cárceres, hospitais e escolas; no contexto da
cotidianidade. Supunha que o poder, antes de mais nada, se manifestava no
contexto do cotidiano, contexto este que chamou de “microfísica do poder” ou de
“capilaridade”. Assim, por exemplo, nos âmbitos da família existem “relações de
poder” entre pais e filhos, marido e mulher, que se expressam em regras de como
se devem comportar os indivíduos, regras essas em que se ocultam discursos de
poder nos quais a mulher e as crianças são dominados pelo pai.
“Entre cada ponto do corpo social, entre um homem e uma mulher, em uma família,
entre um professor e seu aluno, entre o que sabe e o que não sabe, passam
relações de poder que não são a projeção pura e simples do grande poder do
soberano sobre os indivíduos; são, melhor dizendo, o solo movediço e concreto
sobre o qual esse poder se incorpora, as condições de possibilidade de seu
funcionamento”3.
É como se o poder surgisse diretamente das relações individuais, como uma
manifestação imediata da própria socialização humana.
Foucault realizou estudos sobre como se exerciam a pena e o castigo durante a
época das monarquias absolutistas e como mudaram com a idade moderna. No
primeiro caso, o castigo era brutal: torturas e suplícios, como ser queimado em
praça pública pela Inquisição; essa forma de castigo expressava o poder do
monarca com todo o seu despotismo absoluto. Na época da Ilustração, o castigo
se tornou mais “racional”, marcado pelos critérios próprios de eficiência das
ideias ilustradas, que terminaram se expressando, por exemplo, no projeto e
operação das prisões modernas que controlam e administram racionalmente até os
corpos dos “delinquentes”.
Foucault assinala que: “O momento em que se percebe que era, segundo a economia
do poder, mais eficaz e mais rentável vigiar do que castigar. Este momento
corresponde à formação, ao mesmo tempo rápida e lenta, de um novo tipo de
exercício do poder no século XVIII e inícios do século XIX”4. Ademais, Foucault
deu relevo aos “saberes” ou teorias que se expressam nas instituições mentais,
teorias que separam os “sãos” dos “loucos”. Para Foucault, todo saber expressa
uma intenção de poder. Foucault tende a visualizar a sociedade como um imenso
cárcere, em que, de alguma forma, todos somos presidiários e carcereiros
observados na “sala de controle” do poder.
“A delinquência, com os agentes ocultos que a buscam, mas também com o rastreio
generalizado que autoriza, constitui um meio de vigilância perpétua sobre a
população: um aparato que permite controlar, através dos próprios delinquentes,
todo o campo social”5.
É evidente a aproximação Orwelliana.
Todos somos opressores
Mas, ao contrário da distopia de Orwell, o poder, em Foucault, está
descentralizado, ou seja, que todo indivíduo é um agente ativo e passivo dele e
inclusive as duas coisas ao mesmo tempo. O poder, segundo Foucault, é mais
exercido que possuído. Essa ênfase no poder e em sua onipresença foi, sem
dúvida, resultado do efeito duplo da derrota do movimento dos trabalhadores
depois do Maio francês – nas mãos da burocracia reformista e stalinista que o
traiu – como também da espantosa burocracia russa que traiu a Revolução de
Outubro. A afinidade com o anarquismo é evidente em sua obscura concepção do
poder em geral. Foucault, na realidade, não entendeu Marx e o confundiu com o
stalinismo e os horrorosos manuais stalinistas, ou o combateu na forma da
caricatura mecânica e escolástica como o expôs Althusser. À pergunta “Está
alinhado com a posição marxista?” Foucault respondeu de forma sincera:
“Não o sei. Verás, não estou seguro de saber o que é o marxismo e não creio que
exista como algo abstrato. De forma que, quando mencionas o marxismo, te
pergunto a qual marxismo te referes […] Em outras palavras, não sei o que é o
marxismo. Tento lutar com os objetos de minha própria análise, razão por que,
quando uso um conceito utilizado por Marx ou pelos marxistas, um conceito útil
e tolerável, para mim é indiferente. Sempre me neguei a considerar como fator
decisivo estar ou não de acordo com o marxismo na hora de negar ou aceitar o
que digo. Não poderia me importar menos”6.
Ou seja, a derrota política de 1968 significou para Foucault a impossibilidade
virtual de realizar o comunismo, por mais desejável que este fosse:
“Na realidade, há duas espécies de utopias: as utopias proletárias socialistas,
que gozam da propriedade de não se realizar nunca, e as utopias capitalistas
que, infelizmente, tendem a se realizar com muita frequência”7.
Os estudos de Foucault sobre as formas históricas de exercício do poder e das
ideologias que expressam não carecem de interesse. Vigiar e castigar é, sem
dúvida, sua obra mais sólida em termos de sua documentação. No entanto, sua
visão é superficial ao não explicar a origem e o conteúdo do poder e se limitar
ao nível descritivo. O próprio Foucault confessa de certa forma essa
superficialidade:
“Tratava-se de não analisar o poder no plano da intenção ou da decisão, de não
procurar tomá-lo pelo lado interno, de não propor a questão (que acredito ser
labiríntica e sem saída) que consiste em dizer: quem tem, então, o poder?, que
tem na cabeça?, que busca quem tem o poder? Havia que se estudar o poder, ao
contrário, pelo lado de sua intenção – se ela existe – se ela se investe
completamente dentro de práticas reais e efetivas; estudá-lo, de certo modo,
pelo lado de sua cara externa”8.
Foucault está obcecado em saber como se manifesta o poder, mas não sabe como
surge porque, para ele, está sempre presente como uma manifestação metafísica.
Embora Foucault assinale, incidentalmente, que as formas de pena e castigo da
modernidade correspondem à ascensão da burguesia, a tendência geral de seu
pensamento é explicar o poder como manifestação de um discurso que expressa
“relações de poder”. “O discurso não é simplesmente aquele que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquele pelo qual, e por meio do qual se luta,
aquele poder que se deseja conquistar”9. Estamos diante de um círculo vicioso
que se remete do poder ao discurso e vice-versa. Isto é idealismo ou a corrente
que explica a realidade por meio das ideias. O marxismo, pelo contrário,
explica a sociedade a partir da realidade material e das relações sociais
objetivas que se transformam historicamente. O marxismo, em sua essência, é
materialista-dialético, o contraste não poderia ser mais nítido. Marx e Engels
criticaram os filósofos especulativos que realizam:
“a arte de converter as cadeias reais e objetivas, que existem fora de mim, em
cadeias dotadas de uma existência puramente ideal, puramente subjetiva, que
ocorre somente em mim e, portanto, todas as lutas externas, sensíveis, em puras
lutas especulativas”10.
É verdade que Foucault não omite o caráter histórico dessas relações de poder,
mas, ao torná-las parte imanente das relações humanas, as eterniza. Foucault vê
“relações de poder” em todas as partes e em todas as épocas, e a tarefa do
investigador, desde o seu ponto de vista, é explicar como se manifestam na
superfície. Para Foucault, somos todos sujeitos dessas relações, somos
opressores e oprimidos ao mesmo tempo: o operário pelo burguês, a esposa pelo
operário, os filhos pelos pais. O poder é uma “malha” hipostasiada ou inchada
da qual todos fazemos parte, um caleidoscópio que se entrecruza e se alterna.
Foi essa concepção fragmentária das lutas e a incapacidade de ver o peso
relativo de cada uma delas que Foucault deixou como herança à teoria da
interseccionalidade. Assim, o trabalhador explorado também é um opressor, pois
o poder “é exercido em rede, e, nela, os indivíduos não só circulam, como
também estão sempre em situação de sofrê-lo e também de exercê-lo. Nunca são o
alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus retransmissores. Em outras
palavras, o poder transita por meio dos indivíduos, não se aplica a eles”11.
Assim, pois, Foucault converte a maioria da humanidade trabalhadora em
opressora. Se as relações de poder são eternas, que sentido tem a luta contra a
opressão? Se o trabalhador é tão opressor quanto o burguês, que sentido tem a
luta pelo socialismo? O fato de que os trabalhadores possam se tornar presas de
preconceitos machistas ou homofóbicos – situação que certamente ocorre – isso não
elimina o seu papel central na produção capitalista e seu potencial para
destruir pela raiz o sistema capitalista, mas como Foucault não entende de
relações materiais de classe coloca o trabalhador no mesmo saco junto ao seu
explorador.
A onipresença do poder
O caráter tão abstrato das “relações de poder” apaga as diferenças de classe e
aquelas se confundem com a própria natureza social do ser humano. Não basta
identificar e descrever o funcionamento das relações de poder, é necessário,
acima de tudo, entender o seu caráter, sentido e origem. Foucault fala de como
se exerce o poder, mas não sabe o que é nem de onde vem. Por mais que tentem
negá-lo os antropólogos burgueses, as poucas sociedades de caçadores-coletores,
que ainda não haviam sido dissolvidas ou corrompidas pelo
capitalismo, apresentam relações sociais igualitárias e os assuntos
comuns são resolvidos de forma comunitária. Falar aqui de “relações de poder” é
uma calúnia burguesa contra a humanidade. Mas, como o conceito de poder é tão
ambíguo e gelatinoso, é possível que algum discípulo de Foucault, astuto,
objete que, mesmo aqui, existem relações de subordinação do indivíduo à
sociedade. Realmente, não sabemos se algum neandertal se sentiu oprimido quando
o clã lhe exigia cercar um mamute, deste ou daquele lado, mas, sendo o ser
humano um animal social, é impossível destacar o indivíduo da sociedade e nunca
será possível fazer isso. Engels escreveu em uma carta que combate as ideias de
Bakunin que:
“nenhuma ação comum é possível sem a imposição a algumas pessoas de uma vontade
alheia, ou seja, de uma autoridade. Seja pela vontade de uma maioria de
votantes, de um comitê dirigente ou de um só homem, será sempre uma vontade
imposta aos dissidentes, mas sem esta vontade única e diretora, nenhuma cooperação
é possível”12.
Para o marxismo, do que se trata é de saber sob que condições históricas e
econômicas esse caráter social do trabalho, ao qual se submete o indivíduo,
significa opressão e sob que condições históricas é possível eliminar o caráter
explorador sob o qual se realizou o trabalho social desde que surgiram a
civilização e a luta de classes. O erro de Foucault se constitui em pôr um
sinal de igualdade entre trabalho social e opressão, como se a única forma de
socialização possível fosse de caráter opressivo.
Na realidade, os homens e as mulheres das sociedades caçadoras-coletoras
gozam de uma ampla liberdade pessoal sem que exista opressão em sua
integração ao seu clã ou coletividade, de fato daqui obtêm seu sentido de
individualidade, que é muito diferente da decadente subjetividade capitalista.
É com o nascimento da sociedade de classes que surgem simultaneamente diversas
formas de opressão: a mulher se subordina ao varão proprietário e à família
como forma de escravidão doméstica, os filhos se convertem em propriedades e
vias de transmissão da herança, as castas nascem como uma forma de se fixar a
estratificação social, o racismo surge como justificação da escravidão e da
conquista imperialista. Com a divisão do trabalho, não só na economia, mas
também na administração do Estado, surgem diversas instituições com sua
burocracia e autonomia relativa, com todos os protocolos e regras infinitas,
como tanto gostam de sublinhar os seguidores de Foucault. Com a classe
dominante, surge uma ideologia dominante que se infiltra de diversas formas em
todos os poros da sociedade. Nasce o “discurso de poder”, que tanto obceca os
pós-modernos, como se fosse a origem da opressão quando é, na realidade, um
efeito que reage dialeticamente sobre sua própria base. Por isso, o marxismo
sublinha a origem, o sentido e a funcionalidade das diversas formas de opressão
integradas e reforçadas pelos diversos modos de produção classistas.
Ao ser onipresente e não ter uma fonte identificável, o poder se converte em
uma força metafísica ou em parte da natureza humana. É o retorno, sob novas e
estridentes formas, de um dos mitos burgueses mais velhos: o homem como lobo do
homem com uma natureza eterna. O aparente radicalismo se converte em uma ideia
reacionária vulgar: o homem é opressor por natureza. O poder se manifesta e é
exercido por puro sadismo. Para Foucault, o ser humano está em guerra perpétua:
“Faltam mapas estratégicos, mapas de combate, porque estamos em guerra
permanente, e a paz é, nesse sentido, a pior das batalhas, a mais furtiva e a
mais mesquinha”.
Lenin havia escrito, seguindo Clausewitz, que a política é a continuação da
guerra por outros meios, mas Lenin se referia à luta de classes e à tarefa de
organizar as massas trabalhadoras para a construção do socialismo. Para o
marxismo, a subordinação do homem pelo homem tem uma origem e história,
remonta-se à divisão da sociedade em classes. Para Foucault, a opressão só tem
história, mas é eterna, imanente ao próprio homem. Não há dúvida de que, para
Foucault, as relações de opressão são imanentes ao ser humano. Por exemplo, em
uma entrevista realizada em 1980 à pergunta: “É intrínseco à existência humana
que sua organização se transforme em uma forma repressiva de poder?” Ele
respondeu:
“Sim. Claro. Tão logo haja pessoas que se encontrem em uma posição – dentro do
sistema de relações de poder – onde possam agir sobre outros e determinar a
vida e o comportamento destes”13.
Mas essa possibilidade de agir sobre outros – concentrando riqueza na forma de
propriedade privada – não existiu sempre e, portanto, a opressão não é nem um
pouco intrínseca ao ser humano. Foucault fala de “mapas estratégicos”, “mapas
de combate”, mas não tem nenhuma estratégia a oferecer além da fraseologia
barulhenta.
Foucault tomou de Nietzsche o estilo oracular e quase-poético, a forma de
escrever obscura e ambígua cheia de metáforas estridentes. É verdade que seus
aforismos são provocadores, sugestivos e convidam à reflexão; no entanto,
também convidam à confusão. O convite à reflexão não se realiza de forma
alguma. A academia burguesa tem um olfato insuperável para promover tudo o que
implique confusão e indeterminação entre a esquerda. Não é casual a difusão das
modas pós-modernas, sobretudo em períodos de recuo do movimento de massas. A Escola
de Frankfurt, o desconstrutivismo, Foucault etc., são parte de uma família de
autores com ideias confusas que são promovidas entre a esquerda porque a deixam
descabeçada, sem objetivo, sem programa.
Capilaridade ou superficialidade versus conhecimento científico
Em Foucault, a “capilaridade” do poder se converte em superficialidade
descritiva que não vai além do discurso e dos protocolos que permeiam a
realidade das prisões, hospitais, escolas e outros contextos institucionais e
cotidianos. Trata-se de uma visão “capilar” que não encontra o enlace e o
sentido dos capilares com as veias e as artérias, e destas com o coração. Que
pensaríamos de um médico que não soubesse como estão os capilares relacionados
ao conjunto do sistema circulatório? Como entender, por exemplo, a
cotidianidade de um trabalhador e de sua família sem situá-la no contexto da
exploração capitalista com suas extenuantes jornadas de trabalho, salários
baixos, bairros pobres e moradias indignas?
Um dos livros fundadores do marxismo, “A Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra” de Engels, descreve o entorno cotidiano dos trabalhadores londrinos
de seu tempo para ilustrar a exploração capitalista sem economizar detalhes dos
bairros insalubres; Lenin, desde a redação de Pravda e Iskra,
publicava resenhas jornalísticas sobre as condições particulares de trabalho e
luta dos trabalhadores russos, procurando sempre vincular as particularidades
com as leis subjacentes do capitalismo e da luta de classes; Trotsky escreveu
um livro, “Problemas da Vida Cotidiana”, para colocar em cena os problemas
cotidianos dos trabalhadores russos depois da revolução.
Assim o marxismo é uma ferramenta útil para lançar luz sobre o sentido e
significado do cotidiano, vinculando o particular ao geral. Evidentemente,
aprofundar nesse âmbito é uma tarefa que nunca se completa e sempre pode ser
enriquecida com novos estudos sobre o presente e o passado. O que queremos
sublinhar aqui é que o cotidiano, como instância do particular, não pode ser
entendido senão através do geral, que expressa; e, ao mesmo tempo, que as leis
gerais, as tendências do capitalismo, não existem fora da realidade concreta.
As ondas superficiais do mar não são mais que a manifestação imediata de
correntes profundas e carecem de sentido sem elas. A aparência deixa de ser
superficial quando se estabelecem seus laços com a essência. A essência revela
sua profundidade quando é demonstrada em suas diversas manifestações
fenomênicas. A essência e o fenômeno, o particular e o geral não são mais que
as duas caras da mesma moeda. Não obstante, para o pós-modernismo, a
compreensão das leis objetivas da realidade é impossível porque o homem está
preso a discursos e ideologias que não pode transcender. O marxismo como
ciência – como toda ciência – seria impossível sem a possibilidade de se
compreender a realidade e as leis que a regem. Sem isso, a revolução socialista
é impossível, pois não se pode mudar o que não se pode compreender nem
controlar.
Poder-se-ia objetar que a cotidianidade dos trabalhadores não esgota as
manifestações concretas das relações de poder que sofrem muitos outros setores
da sociedade, a opressão de outros setores como mulheres, minorias raciais,
movimento LGBTTI; efetivamente, é assim. Mas, sem saber vincular o particular
ao geral, é impossível entender o lugar do particular nem o seu papel
específico; sem saber vincular as diversas formas de opressão às relações
dominantes de produção, não faremos mais do que uma descrição superficial do
fenômeno. Não é possível, por exemplo, entender a origem de cada uma das
infinitas manifestações do patriarcado e do machismo de nossos dias sem fazer
uma referência, em primeiro lugar, a sua relação originária com o nascimento
das classes sociais, e, também, à importância da escravidão doméstica no modo
de produção capitalista (como espaço de reprodução da força de trabalho, de
reprodução da ideologia dominante e de carga sobre o salário do custo das
tarefas domésticas).
É inegável que existem diversas formas de opressão além da exploração de
classe: discriminação por gênero, cor/etnia, orientação sexual etc., etc. Mas
sem tirar a importância dessas formas de opressão, sem deixar de assinalar a
importância de lutar aqui e agora contra essas injustiças, é necessário também
identificar a funcionalidade dessas opressões dentro do sistema imperante e
identificar a classe que, por seu papel na produção, é capaz não só de
paralisar a produção capitalista, como também de colocá-la sobre outras bases,
ou seja, derrubar o capitalismo e construir o socialismo; um regime de economia
planificada e de democracia operária que arranque pela raiz toda forma de
opressão e exploração. É claro que os trabalhadores não poderão realizar a
revolução sem ganhar politicamente a todos os setores oprimidos da população. O
marxismo luta pela unidade na luta e vê na fragmentação um fator favorável à
reação.
O marxismo não exige anjos para lutar. A revolução se fará com homens e
mulheres reais com todos os seus preconceitos. Seria ingênuo esperar que nós,
os trabalhadores, não fôssemos reprodutores, em maior ou menor medida, de
preconceitos machistas e de outro tipo. Mas também entendemos que esses
preconceitos tendem a se desfazer por meio da luta de massas, da luta solidária
que une os trabalhadores acima das fronteiras de gênero, etnia, religião e
orientação sexual, contra um inimigo comum. Também sabemos que, enquanto não
destruamos o capitalismo, esses preconceitos renascerão como uma hidra, como
uma infecção endêmica, pois o capitalismo necessita deles para dividir a massa
dos explorados com barreiras artificiais. Os trabalhadores não devemos temer o
exercício do poder: nosso poder, o poder do trabalhador, a democracia
proletária coordenada de forma local, regional e mundial. Nosso objetivo é
destruir o poder da classe dominante, destruir seu Estado e a fonte final de
seu poder: a propriedade privada dos meios de produção fundamentais. Para os
marxistas, essa luta não é um simples “jogo de xadrez” que se observa de fora
com pedantismo acadêmico. Posicionamo-nos claramente e declaramos publicamente
nossos objetivos.
Para Foucault, a psiquiatria faz parte de um discurso de poder cujo objetivo é
segregar os chamados “loucos” e controlar seu corpo e inclusive sua alma. “Não
existe relação de poder sem constituição correlativa de um campo de saber, nem
de saber que não suponha e não constitua, ao mesmo tempo, umas relações de
poder”13.
É certo que a ciência médica não se desenvolve à margem dos interesses sociais
e que muito frequentemente foi utilizada para reprimir e discriminar
sistematicamente mulheres, homossexuais, negros etc. Basta apenas lembrar as
teorias racistas como a frenologia ou a homossexualidade concebida como
enfermidade mental. La Castañeda da época porfirista é um exemplo e também o
regime stalinista, que recluía opositores políticos em instituições mentais.
Tudo isso é certo, mas convém sempre ter o sentido da proporção e não ir
demasiado longe. Toda verdade se converte em seu oposto além de certo ponto.
Por acaso as enfermidades realmente não existem? Enfermidades mentais, como a
esquizofrenia ou a depressão, são apenas inventos da medicina para controlar os
indivíduos? É certo que o contexto capitalista exacerba essas enfermidades, mas
não as torna menos reais. Ver a psiquiatria em seu conjunto como uma mera
estratégia de poder é condenar a ciência como mito e cair no pior dos
obscurantismos, uma característica muito própria da pós-modernidade. Para
cúmulo da loucura pós-modernista, Foucault afirma que não só a loucura é um
invento do poder, também o sexo e inclusive o próprio homem: “O homem é só uma
invenção recente, uma figura que não tem nem dois séculos, uma simples dobra em
nosso saber e que desaparecerá quando este encontre uma nova forma”15. O selo
de identidade da pós-modernidade é confundir o conceito da realidade com a
própria realidade. Evidentemente, o conceito de humanidade evoluiu – como
qualquer outro conceito – mas a existência do homem não depende de seu
conceito; ao contrário, o conceito se extrai da realidade por meio de um longo
processo histórico. Desse subjetivismo consiste a relação com a
Teoria Queer, cujo guru é Foucault, que supõe que os papeis e identidades
de gênero podem ser reinventados à vontade sem transformar a realidade
material. Para o marxismo, o homem se elevou acima do reino animal e da
natureza realmente existentes através da transformação da natureza, a
fabricação de ferramentas, processo no qual o homem se transformava e se criava
a si mesmo.
Luta pelo socialismo ou nada
“Onde há poder, há resistência”16. Resistência é a forma como Foucault concebe
a luta pela libertação. É o único programa político possível ao estar o poder
tão descentralizado e fragmentado em todo tipo de contextos irredutíveis, ou
seja, opor-se e desobedecer sem objetivo algum. Não pode existir um programa
político que unifique onde não existe mais do que um mosaico desconexo de lutas
parciais, pois “A sociedade é um arquipélago de poderes diferentes”16. “O poder
se exerce a partir de inumeráveis pontos”18. Mas os explorados não temos a
opção de resistir: resistimos todos os dias aos baixos salários, às jornadas
extenuantes, aos ataques a nosso nível de vida. Isto não é um programa
político.
Onde não existe uma coluna vertebral que vincule essas lutas e lhes dê um
objetivo e sentido não pode existir um sujeito revolucionário, senão uma
infinidade de sujeitos segregados. Onde não existe uma fonte identificável do
poder, não há como combatê-lo. Mais ainda, ao ser todos e cada um dos
indivíduos opressores e oprimidos, toda luta pela emancipação se converte em um
absurdo ou em uma tentativa encoberta e mesquinha de exercer o poder. A
alternativa política do pós-modernismo se reduz a nada. “Não sou um profeta,
meu trabalho é construir janelas onde antes só havia paredes”, afirmou
Foucault, omitindo-se de dizer que, na realidade, sua teoria implicava paredes
que separam as lutas com muros infinitos. É necessário entender que o
capitalismo é um sistema mundial, vinculado em nível global e que, portanto, as
lutas parciais também devem ser entendidas como uma luta mundial dos oprimidos
contra o capital. As lutas isoladas por si mesmas serão infrutíferas.
Para o marxismo, o que sustenta as lutas parciais é a existência do sistema
capitalista, e o programa que permite unificá-las é o que deriva das próprias
contradições objetivas do sistema; o sujeito revolucionário deriva do lugar
central que desempenha o proletariado na produção. Não existe aqui nenhum
capricho nem amor abstrato pelo trabalhador, mas um estudo objetivo da
realidade e da luta de classes. No entanto, as ideias de Foucault desarmam os
trabalhadores. Não é casualidade que, em um informe desclassificado da CIA,
chamado “França, a deserção dos intelectuais de esquerda”, essa agência do
imperialismo visse com bons olhos a difusão das ideias de Foucault entre a
intelectualidade de esquerda em prejuízo do marxismo, simplesmente porque o
pós-modernismo é inofensivo aos olhos da classe dominante, uma classe que,
certamente, tem clareza em seus objetivos:
“Ainda mais efetivos em minar o marxismo foram, no entanto, aqueles
intelectuais que, apresentando-se como estudiosos do marxismo nas ciências
sociais, acabaram repensando e rejeitando toda a tradição. […] Em sua maior
parte, concluíram que as noções marxistas da estrutura do passado – das
relações sociais, dos padrões dos acontecimentos e de sua influência no longo
prazo – são simplistas e inúteis. No campo da antropologia, a influente escola
estruturalista de Claude Lévi-Strauss, Foucault e outros realizou praticamente
a mesma tarefa. Embora as metodologias do estruturalismo e dos Anais agora
atravessem um mal momento (os críticos as acusam de ser demasiado difíceis para
ser entendidas por gente normal), acreditamos que sua tarefa demolidora da
influência marxista nas ciências sociais provavelmente perdure como sua
contribuição profunda à academia moderna, tanto na França quanto em outros
países da Europa ocidental”19.
Vimos que as ideias de Foucault não constituem de forma alguma uma opção ao
marxismo revolucionário, nem tampouco ameaça alguma ao sistema capitalista e à
luta contra a exploração e à opressão. Não é porque as ideias de Foucault sejam
confusas e de contornos indefinidos; eternizem a opressão ao considerar que
esta faz parte da natureza humana; obscureçam a exploração capitalista em um
mar abstrato de “relações de poder”, afogando a luta de classes do proletariado
dentro de um conjunto indeterminado de infinitas opressões; considerem a
opressão parte de um discurso em vez de uma realidade objetiva; nos ofereça
subjetivismo em vez de um estudo científico do capitalismo e de suas
contradições; não ajude em nada a buscar a unidade entre os explorados e
oprimidos ao dividir as lutas em inumeráveis “arquipélagos de resistência”;
converta as vítimas da opressão em agentes igualmente opressores. Oferece “resistência”
em vez de luta contra a exploração. Os que consideram que Foucault é uma opção
deveriam atender ao que o próprio Foucault assinalou a respeito: “Desde o
momento em que se concebe o poder como um conjunto de relações de força, não
pode haver nenhuma definição programática de um estado ótimo de forças […]
Escute, escute… Não é tão difícil! Não sou um profeta, não sou um organizador,
não quero dizer às pessoas o que devem fazer. Não vou dizer-lhes: isto é bom
para ti, aquilo não”20. Mas os explorados necessitamos de um programa,
necessitamos de clareza teórica, compreender como o capitalismo funciona, quais
são suas contradições e leis, a natureza da luta de classes e o potencial
revolucionário dos trabalhadores. Isso foi estudado como ninguém mais pôde
fazê-lo, por Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Necessitamos da arma da teoria para
criar a organização que canalize as lutas que já estão abalando o sistema na
crise mais profunda de sua história. Necessitamos de seriedade, clareza e
organização. O marxismo é, hoje mais do que nunca, uma arma insubstituível.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM LUCHADECLASES.ORG
Notas:
1 Foucault, M. Microfísica del poder, México, Siglo XXI, 2019, p.
139.
2 Foucault, M. Seguridad, territorio, población, México, FCE, 2006,
p.16.
3 Foucault, M. Microfísica del poder, México, Siglo XXI, 2019, p.
183.
4 Foucault, M. Vigilar, castigar. Nacimiento de la prisión,
Argentina, Siglo XXI, 2002, pp. 298-299.
5 Foucault, M. Vigilar, castigar. Nacimiento de la prisión,
Argentina, Siglo XXI, 2002, p. 279.
6 Entrevista, 1980, en: otrasvoceseneducacion.org/archivos/208610
7 Foucault, M. La verdad y las fuentes jurídicas, Barcelona, Gedisa,
1996, p. 114.
8 Foucault, Defender la sociedad, México, FCE, 2002, p.
37.
9 Foucault, El orden del discurso, Venezuela, TusQuets, 2002, p.15.
10 Marx, C., Engels, F., La sagrada familia, México, Grijalbo, 1971,
p. 149.
11 Foucault, Defender la sociedad, México, FCE, 2002, p.
38.
12 Engels a Pablo Lafargue, en: Marx, Engels, Lenin, Acerca del
anarquismo y el anarcosindicalismo, Moscú, Progreso, 1976, p.39.
13 Entrevista, 1980, en: otrasvoceseneducacion.org/archivos/208610
14 Foucault, M. Vigilar, castigar. Nacimiento de la prisión,
Argentina, Siglo XXI, 2002, p.30.
15 Foucault, Las palabras y las cosas, Argentina, Siglo XXI, 1968, p.
9.
16 Foucault, M. Historia de la sexualidad, Vol I, La voluntad de
saber, México, Siglo XXI, 1999, p. 57.
17 Foucault, M. Las mallas del poder, en Estética, ética y
hermenéutica, Obras esenciales, Vol III, Barcelona, Paidós, 1999, p. 239.
18 Foucault, M. Historia de la sexualidad, Vol I, La voluntad de
saber, México, Siglo XXI, 1999, p. 114.
19 Alan Woods, “Marxismo frente a política de identidad” en:
https://marxismo.mx/marxismo-frente-a-la-politica-de-identidad/
20 Entrevista, 1980, en: otrasvoceseneducacion.org/archivos/208610
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