quarta-feira, 27 de julho de 2022

O ridículo ululante * Dalton Rosado / CE

O ridículo ululante

Dalton Rosado / CE

A política tem o condão de propiciar situações ridículas em profusão, e a mutação social decorrente da dialética do movimento social se encarrega de demonstrar aquilo que originalmente poderia parecer heroico, mas que era essencialmente ridículo, ainda que trágico.

Há coisa mais ridícula hoje do que o gestual hitlerista tão bem caricaturado por Charles Chaplin no seu antológico filme “O grande ditador”?

Ainda ontem assistimos no Brasil a um Presidente eleito pelo voto afirmar que as eleições no Brasil foram fraudadas por mecanismos eletrônicos, questionando a sua própria legitimidade governamental, e pasmem, para uma plateia de embaixadores internacionais por ele convocados e que aqui representam seus países.

À medida que as mutações sociais ocorrem elas promovem a obsolescência de determinados tabus, e é quando vemos quão ridículos eles eram.

O que dizer do apedrejamento de uma mulher acusada de adultério, criminalização ainda vigente em algumas regiões onde predomina o fundamentalismo religioso anti-civilizatório?

O que dizer de uma escritura pública de propriedade de um escravo negro recém-comprado num cais de porto brasileiro a um traficante de escravos num navio negreiro?

O que dizer da ridícula (e perigosa) adesão governamental brasileira às teses do recém-falecido Olavo de Carvalho, um misto de filósofo com astrólogo defensor de teses como existência de uma conspiração comunista mundial (ele se referia ao marxismo tradicional capitalista de estado ultrapassado), e que influenciou os bolsominions a ponto de termos um Ministro das Relações Exteriores sob tal orientação e que mais parecia um detrator dessas relações e que considerava a China, o país que pratica o mais selvagem capitalismo do

Planeta, como comunista; e sem falar em alguns que afirmavam que a terra era plana?

O que dizer do ridículo argumento de Vladimir Putin em promover uma matança indesculpável do povo ucraniano (também dos incautos soldados russos) em nome de uma hipotética contenção do avanço do nazismo na Ucrânia?

O que dizer do segmento militar das sociedades ditas modernas, que tem formação preponderantemente belicista, querer se auto atribuir funções político-econômico-sociais? Aliás já se disse que até mesmo a guerra é questão tão grave que não pode ser colocada apenas nas mãos de generais.

O que dizer de alguém que considerou que as eleições estadunidenses foram fraudadas e orientou a sua turma para um putsch no capitólio tentando dar um golpe de estado sem considerar o ridículo de tal proposição por esta forma, como o fez Donald Trump?

Mas o senso do ridículo teima sempre em vir à tona.

Como a memória social é amnésica, ressurge em muitos lugares o ridículo representado por teses neonazistas nacionalistas dos supremacistas raciais cujos músculos bombados não estão em simetria com o cérebro atrofiado.

O capitalismo está se colocando na condição de fato social apenas ridículo, se infelizmente não fosse trágico, concomitantemente.

A tecnologia moderna é incompatível com uma lógica que surgiu num momento em que a força de trabalho humana era largamente necessária e a única possível para a execução de todas as ações indispensáveis à vida.

O embrião do capital (riqueza abstrata) decorreu do sistema de trocas quantificadas de objetos transformados em mercadorias (o escambo original, mensurado pelo tempo de trabalho dedicado a cada produto produzido) que gerava a cobiça de obtenção de braços escravizados funcionando como meras máquinas capazes de promover a acumulação da riqueza imperceptivelmente transformada na forma abstrata (originalmente material, os objetos in natura que então adquiriram valor de troca na mercantilização como mercadorias) nas mãos dos senhores escravistas.

Ora, a contradição capitalista e sua inconsciência autodestrutiva, promove a obsolescência da força de trabalho humana aplicada ao sistema de produção e de trocas no mercado, e aí reside a evidência do ridículo (e contraditório) que representa a escravização indireta do trabalho abstrato produtor de valor no estágio atual da produção tecnológica.

Então, com a explicitação da incompatibilidade entre forma e conteúdo, ocorre a concretização prática da fábula da galinha dos ovos de ouro, na qual

a ganância promove a morte do que é fonte de riqueza predatória: o capitalismo se autodestrói!

É sábio o dito popular que afirma que o mal por si se destrói…

Mas o problema é que no seu processo ridículo de autodestruição enquanto forma de relação social, ela arrasta para o abismo todo a sociedade, aí incluindo até os seus submissos agentes beneficiários (os capitalistas).

Exemplo dessa generalização não seletiva de destruição dos seres humanos criadores do próprio capitalismo constatamos na agressão capitalista ao meio ambiente.

Na sua sanha de busca insensata do lucro capitalista emite-se gás carbônico em níveis avassaladores na atmosfera causando o aquecimento global que não atinge apenas os povos pobres que se situam na linha do Equador ou abaixo dela, mas todos os ricos capitalistas situados nos países que detêm hegemonia econômica mundial.

A crise ecológica não é totalmente seletiva, ainda que atinja os pobres com mais virulência. Ainda hoje a Europa arde num calor insuportável que promove a queima das florestas que retroalimenta a emissão de CO² na atmosfera de modo suicida.

Não é ridículo que se proponha o desenvolvimento econômico (todos propõem, direita e esquerda institucional) sob bases capitalistas que não pode dispensar os combustíveis fósseis poluentes?

Não é ridículo que todos os candidatos no Brasil defendam a expansão e a preponderância da Petrobras como suporte econômico da economia brasileira?

Todos querem democracia como objetivação da vontade coletiva; até os ditadores ou aspirante a ditadores dela se aproveitam.

Não é por ela que Boçalnaro, o ignaro, chegou ao poder estatal (com apoio do poder econômico, que hoje desconfia da sua competência em entregar um gerenciamento capitalista estatal eficiente) e agora sonha com um golpe ditatorial que lhe desse a perpetuidade nesse mesmo poder?

Foi assim que Hitler chegou ao poder e incendiou o Reichstag, o parlamento alemão, e paulatinamente se assenhoreou de modo absolutista do poder; é assim que Vladimir Putin vem se perpetuando no poder diretamente ou indiretamente há 23 anos.

Da mesma forma o parlamento brasileiro, cuja composição fisiológica do Centrão é predominante, também está por lá ridiculamente (e de modo predatoriamente fisiológico) ungido pela democracia eleitoral burguesa.

Denunciamos as ditaduras como exercício arbitrário do ridículo poder no qual se investem; mas consideramos democrática a escolha pelo voto, mesmo sabendo da manipulação do poder político-econômico que é o que define a pretensa vontade (ou falta de livre vontade) eleitoral pelo voto.

Em cada nível eleitoral tudo se processa sob circunstâncias ridículas especiais.

Nos municípios interioranos do Brasil profundo é o cabresto eleitoral municipal o que predomina;

– nas grandes cidades é a mídia local atrelada ao poder político-econômico, e as corporações defendendo cada interesse específico e excludente, quem manipula as inconsciências eleitorais;

– nas eleições Presidenciais é a economia o que comanda o efeito manada, razão pela qual ciclicamente os governantes são defenestrados do poder após repetidos fracassos, ou se eleva à santo o governante que momentaneamente entrega resultados econômicos eventualmente satisfatórios que sucumbirão logo adiante por conta da inevitável insustentabilidade governamental estatal capitalista.

As ditaduras são explicitamente ridículas; mas a democracia burguesa enquanto farsa de representação da livre vontade popular representa a ridícula manipulação dessa mesma vontade.

Há uma falsa dicotomia entre ditaduras burguesas e democracias burguesas. Mesmo que a primeira seja tiranamente ridícula, a segunda também o é, ainda que de forma socialmente consensual até certo ponto e sejam respeitados determinados cânones de civilidade.

Como temos dito repetidamente, a verdadeira antítese às duas espécies que pertencem ao gênero capitalismo é uma sociedade cuja relação social se dê por meio de uma produção voltada para a satisfação das necessidades coletivas sem a mediação pela forma valor e estruturadas a partir de organismos jurídicos de base, com poderes administrativos, legislativos e judiciários.

Mas como sempre ocorre ao longo da história, um dia, se sobrevivermos como espécie ao capitalismo, consideraremos todos os saberes e sociabilidade hoje existentes como primários e incipientes, e esta última forma social como ridículo modus vivendi em relação a esses momentos futuros.

Haverá um tempo futuro em que consideraremos inaceitáveis e claramente ridículos conceitos que hoje admitimos como seriamente válidos e aceitáveis.

Dalton Rosado / CE

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Ghassan Kanafani VIVE * Gercyane Oliveira & OP.BR

Ghassan Kanafani
a voz da Palestina

Em 2022 completam-se 50 anos do assassinato político de Ghassan Kanafani, cometido pelo Mossad. No dia 8 de Julho de 1972, quando vivia em Beirute, uma explosão no carro armadilhado matou-o juntamente com a sua sobrinha. Kanafani era uma das figuras mais importantes da literatura do século XX.

Era também um refugiado, um marxista revolucionário e um internacionalista. Os israelenses afirmaram que o assassinato foi uma resposta ao ataque do Aeroporto de Lod dois meses antes, embora Kanafani não tivesse desempenhado qualquer papel diretamente nisto. Ele era, de acordo com o obituário do Lebanese Daily Star, “um comandante que nunca disparou uma arma, cuja arma era uma caneta esferográfica, e a sua arena eram as páginas dos jornais”. Kanafani era na época da sua morte o porta-voz oficial da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP) e o editor do seu jornal Al Hadaf. A organização saudou ‘o líder, o escritor, o estrategista, e o visionário’.

Ghassan Kanafani passou os primeiros anos da sua vida na cidade portuária do Acre, onde nasceu em 1936. Na ocasião do seu nascimento, o pai de Kanafani e outros membros da sua família participaram da revolta nacional contra a ocupação britânica da Palestina e a sua promoção da colonização sionista. O Acre foi o local de uma prisão de ocupação britânica e das execuções de importantes militantes palestinos. A canção épica “From Acre Prison” (Min Sijjn Akka) protesta contra a sua morte e continua a ser um hino da luta palestina. Antes de 1948, o Acre tinha cerca de 15.000 habitantes palestinos e nenhum povoado sionista. Os ataques sionistas em Nakba levaram à expulsão de todos os palestinos, com exceção de 3.000. Ghassan, de 12 anos, e a sua família tornaram-se refugiados na cidade de Zabadiya, no centro-oeste da Síria, juntando-se às centenas de milhares de palestinos exilados das suas terras de origem.

Depois de estudar na universidade de Damasco, Kanafani tornou-se professor e jornalista, trabalhando na Síria, depois no Kuwait, antes de acabar em Beirute. Foi enquanto trabalhava nos campos de refugiados que Kanafani começou a escrever os seus romances; o seu interesse posterior pela filosofia e política marxista surgiu enquanto vivia em Beirute. Isso ficou claro para ele:

“A minha posição política resulta do fato de ser um romancista. No que me diz respeito, a política e o romance são um caso indivisível e posso afirmar categoricamente que me comprometi politicamente porque sou um romancista, não o contrário”.

Histórias curtas, romances e poemas

Os temas da escrita de Kanafani estavam inseparavelmente ligados à luta do povo palestino ao longo da sua vida. O Nakba é retratado de forma viva em obras como The Land of the Sad Oranges (1963):
“Em Al-Nakura, o nosso caminhão estava estacionado, juntamente com vários outros. Os homens começaram a entregar as suas armas aos seus oficiais, ali estacionados para esse fim em particular. Quando chegou a nossa vez, pude ver as espingardas e armas deitados sobre a mesa e a longa fila de caminhões, deixando a terra das laranjas para trás e espalhando-se sobre as estradas sinuosas do Líbano”.

“Depois desse dia, a vida passou lentamente. Fomos enganados por anúncios… ficamos espantados com a verdade amarga. A tristeza começou a invadir os rostos, era difícil conversar sobre a Palestina ou sobre os dias felizes em seus laranjais.”

Os refugiados são centrais para a sua narrativa. No conto angustiante Men in the Sun (1962), um grupo de palestinos é contrabandeado no calor abrasador através do Iraque e do Kuwait. Conseguem atravessar a fronteira mas sufocam até à morte nas costas de um petroleiro. A história é simbólica do estado de paralisia vivido pelos refugiados, onde o acesso à documentação poderia determinar a sobrevivência básica.

Mas as obras de Kanafani não eram contos de desespero e desesperança. Analisadas em conjunto, elas falam dos problemas e das soluções dos que foram expulsos das suas casas. Em Retorno à Haifa (1970), sublinha que “o maior crime que alguém pode cometer é pensar que a fraqueza e os erros dos outros lhe dão o direito de existir à sua custa”. Em outras obras, ele recorre à crescente luta armada pela libertação palestina. A figura central do pequeno romance, Umm Saad encoraja o seu filho a lutar juntamente com os guerrilheiros. Segundo Anni Kanafani, mulher de Ghassan, “Umm Saad era um símbolo das mulheres palestinas do campo e da classe operária… é a mulher analfabeta que fala e o intelectual que ouve e coloca as questões”.

Intelectual Orgânico

Nos anos em que estes clássicos literários foram escritos, Ghassan tinha-se tornado um membro ativo do Movimento Nacionalista Árabe, inspirado pelas ideias de Gamal Abdul Nasser de independência nacional e de desafio ao imperialismo. Mas, em 1961, a tentativa de unificação entre o Egito e a Síria (sob uma República Árabe Unificada Unificada) tinha falhado, e a economia ainda firmemente capitalista tinha vacilado. Na guerra de 1967, Israel deu à resistência liderada por egípcios uma derrota violenta. O declínio do nasserismo ocorreu a par da ascensão da liderança explicitamente comunista nas lutas anti-imperialistas que então se desenrolaram em todo o mundo – Cuba, Moçambique e, com crescente significado internacional, o Vietnã. Durante estes anos, Kanafani, juntamente com o seu camarada George Habash, começou a fazer um estudo mais sério do marxismo, chegando à conclusão de que a crise política no mundo árabe e a ascensão do imperialismo e do sionismo só poderiam ser resolvidas transformando a luta anti-imperialista numa revolução proletária.

Como líder da FPLP, Kanafani voltou a sua caneta para questões abertamente políticas, refletindo a urgência de desenvolver a luta de libertação nacional palestina até ao final dos anos 60. Dedicou cada vez mais o seu tempo a publicar trabalhos sobre as lutas históricas do povo palestino, demitindo-se de um emprego bem remunerado na revista Nasserist al Anwar para dirigir a redação do jornal da FPLP Al Hadaf (The Target). O documento Estratégia para a Libertação da Palestina de 1969 foi co-autoria de Kanafani e fez uma análise marxista de classe sobre as forças envolvidas no movimento revolucionário, discutindo as suas perspectivas e estratégia política. A Resistência e os seus Problemas, um panfleto escrito por Kanafani e publicado pelo PFLP em 1970, é uma discussão crítica sobre liderança, teoria e prática marxista, na luta pela libertação nacional.

Nas páginas de Al Hadaf, Kanafani apelou a “todos os fatos para as massas”. Talvez o seu trabalho abertamente político mais importante tenha sido a sua análise detalhada da revolta palestina de 1936-39. Kanafani escreveu sobre o martírio de 1935 do Sheikh Iz Al Din Al Qassam num artigo influente publicado pela primeira vez numa revista da OLP intitulada Assuntos Palestinos (Shu’un Falastiniyeh) e posteriormente distribuído como panfleto sobre a luta armada pela FPLP. Em A Revolta de 1936-39 na Palestina, concluída no ano da sua morte, Kanafani detalha a estrutura da sociedade palestina, a ascensão do sionismo, os fracassos da esquerda e, talvez o mais crucial, no período que antecedeu 1948, o enfraquecimento do movimento revolucionário pelo impiedoso regime imperialista britânico. A sua violência foi “sem precedentes”, e “foi durante os anos da revolta – 1936-1939 – que o colonialismo britânico lançou todo o seu peso no desempenho da tarefa de apoiar a presença sionista e de lhe pôr de pé”. Neste trabalho, ele não poupa nenhum dos regimes árabes reacionários das suas críticas implacáveis.

Antiimperialismo

Kanafani desempenhou um papel importante no aumento da consciência deste período na luta anti-imperialista e foi um internacionalista incondicional:

“O imperialismo colocou o seu corpo sobre o mundo, a cabeça na Ásia Oriental, o coração no Oriente Médio, as suas artérias alcançando a África e a América Latina. Onde quer que o atinja, prejudica-o, e serve a revolução mundial”.

As descrições do imperialismo de Kanafani são caracteristicamente gráficas. Ele apontou para o significado internacional da luta palestina.

“A causa palestina não é uma causa apenas para os palestinos, mas uma causa para todos os revolucionários… como uma causa das massas exploradas e oprimidas da nossa época”.

Na obra que Anni Kanafani publicou após a morte do seu marido, ela escreveu:

“A sua inspiração para escrever e trabalhar incessantemente foi a luta palestina-árabe… Ele foi um dos que lutou sinceramente pelo desenvolvimento do movimento de resistência de um movimento de libertação nacionalista palestino para um movimento socialista revolucionário pan-árabe do qual a libertação da Palestina seria uma componente vital. Sempre salientou que “o problema da Palestina não poderia ser resolvido de forma isolada de toda a situação social e política do mundo árabe”.

Não devemos esquecer, claro, que Lamees de 17 anos foi assassinada ao seu lado no atentado com um carro armadilhado. A irmã de Ghassan, Fayzeh, pensou:

“Ainda no dia anterior Lamees tinha pedido ao seu tio para reduzir as suas atividades revolucionárias e para se concentrar mais na escrita das suas histórias. Ela tinha-lhe dito: “As suas histórias são lindas”, e ele tinha respondido: “Voltar a escrever histórias? Eu escrevo bem porque acredito numa causa, em princípios. No dia em que eu deixar estes princípios, as minhas histórias ficarão vazias. Se eu deixasse para trás os meus princípios, você mesma não me respeitaria”. Conseguiu convencer a moça de que a luta e a defesa dos princípios é o que finalmente conduz ao sucesso em tudo”.

A análise de classe de Kanafani estava à frente do seu tempo no movimento palestino e apontava para os perigos que se avizinhavam se a tendência burguesa na liderança da OLP não fosse controlada. As negociações com a liderança israelense, disse ele, seriam “uma conversa entre a espada e o pescoço… Nunca vi conversações entre um processo colonialista e um movimento de libertação nacional”.

Ghassan Kanafani foi assassinado pelo seu empenho na resistência palestina. O seu legado continua vivo em todos os palestinos e internacionalistas dispostos a lutar pela causa anti-imperialista.

A necessidade de ler literatura palestina, especialmente neste momento, emana da importância de escrever uma narrativa palestina. A maior parte da literatura palestina é a literatura de resistência. A nossa familiaridade e conhecimento deste tipo de literatura, num mundo pós-apartheid e pós-guerra fria, foi infelizmente determinada pelo que o mercado nos oferece. A nossa familiaridade com a poesia de Mahmoud Darwish, Samih Al-Qasim, Tawfik Zayyad e os romances de Emil Habibi, Jabra Ibrahim Jabra, Ibrahim Nasrallah e Ghassan Kanafani- para mencionar apenas alguns- é no mínimo extremamente pobre. Se estes grandes escritores são lidos, é apenas nos Departamentos de Estudos Islâmicos e do Oriente Médio e outros departamentos acadêmicos. Edward Said tem, sem dúvida, a sorte de escrever em inglês e ser publicado nos Estados Unidos.

Mas estou também pensando em formas de combater a propaganda israelense. Por exemplo, o que o ex-Director Geral de Assuntos Culturais do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelense, Arye Mekel, tinha a dizer:

“Vamos enviar romancistas e escritores conhecidos para o estrangeiro, companhias de teatro, exibições… Desta forma mostra-se o rosto mais bonito de Israel, para que não sejamos pensados puramente no contexto da guerra”.

Deixe-me oferecer uma releitura de dois romances de um dos escritores palestinos mais populares da literatura árabe, Ghassan Kanafani. As histórias de Ghassan Kanafani sobre a luta das mulheres e homens para se libertarem de certas formas desumanas de exploração, opressão e perseguição estão sem dúvida relacionadas com as ideias, valores e sentimentos pelos quais as mulheres e os homens colonizados vivem em sociedade e a sua situação existencial, política e histórica.

Uma compreensão dos romances de Kanafani requer uma compreensão mais profunda tanto do passado dos palestinos oprimidos como do seu presente: uma compreensão que contribua para a sua libertação, e para a libertação humana em geral. Não é difícil para nenhum leitor destes dois romances (os primeiros romances de Kanafani) notar um movimento gradual, consciente e deliberado em direção a uma clara realidade dinâmica: uma nova realidade que nos faz ver o que nunca vimos antes, que nos move para uma nova ordem de percepção e experiência no seu todo. Por outras palavras, ambos os romances têm uma grande influência artística que emerge de um confronto com a realidade, em vez de uma tentativa de escapar dela.

Temas complicados e questões repetem-se ao longo destes romances: exílio, marginalização, morte e história. Tais questões estão, de fato, relacionadas com o papel de Kanafani como escritor empenhado e consciente, revelando a fraqueza de alguns palestinos (que representam o povo colonizado em geral) em preferir a busca de segurança material à luta para recuperar a sua terra (Homens ao Sol).

A responsabilidade da liderança palestina em permitir aos palestinos sufocar no mundo marginal dos campos de refugiados está espantosamente prevista neste romance. Contudo, o mundo das diferentes personagens palestinas é um composto de uma relação poética e orgânica com a terra. Estar separado da terra, e procurando soluções individualistas, leva os homens ao sol a uma morte indigna e trágica. O que o romance explora, então, é a relação dialética entre a realidade interior e a realidade exterior do refugiado palestino.

O mundo de All That Remains (ainda não traduzido no Brasil), por outro lado, é um mundo de paralisia sócio-política que precisa de abrir novas possibilidades para um futuro melhor. Isto requer uma viagem em direção à consciência histórica: um fato que assume a guerra de 1948 como o Centro Emergente e a imagem palestina paralisada. Neste romance, a consciência histórica é alcançada através da transformação individual e coletiva; e o verdadeiro e significativo tempo de liberdade é alcançado através da ação. Claro que, para se alcançar a consciência histórica, é preciso livrar-se da falsa consciência. O romance é, portanto, deixado sem fim porque se trata de começos e não de fins, ou seja, de um processo dialético sem fim. Assim, com o final otimista, aberto, embora violento, de All That Remains, e o apelo à revolução em Men in The Sun, conclui-se que, ao contrário da teorização de Francis Fukuyama, a história nunca pode ser fechada.

Hamid, o herói de All That Remains, é um palestino oprimido que procura a sua terra, história e identidade, que são restauradas através da sua luta para recuperar a sua terra. O verdadeiro cerne de All That Remains não é apenas Hamid, mas as condições reais de guerra e ocupação que são responsáveis pela perda da Palestina. Nós, leitores, somos orientados para um estudo das condições de perseguição e guerra – incluindo a limpeza étnica da Palestina pelas milícias sionistas – responsáveis por essa catástrofe; é o próprio comportamento de Hamid que somos convidados a analisar. Estes são acontecimentos que afetam o caráter de Hamid/Palestina, e o resultado é a ação revolucionária no final do romance em 1965, ou seja, a emergência da Revolução Palestina contemporânea. Com Kanafani percebe-se que um novo mundo é possível, mesmo inevitável, apesar do acordo de cessar-fogo de César do século! Mas porquê a necessidade de uma leitura de Kanafani? A inconsistência da intelligentsia de Oslo encontra-se na escala da pequena burguesia. É por isso que se mostrou, no final, conservadora, por vezes até reacionária no que diz respeito aos principais problemas, como outros intelectuais liberais tradicionalmente árabes, e porque não tolera qualquer pensamento para observações criticamente conscientes.

Não surpreendentemente, aqueles que não aprovam, por exemplo, a crítica aguçada de Edward Said aos Acordos de Oslo são os principais beneficiados. Programas alternativos, tais como os oferecidos por pessoas como Kanafani e Said, têm funcionado como um espelho refletindo a ‘Outra’ Palestina, a verdadeira face que temos tentado reprimir. Daí a intimidação, raiva e acusação de ‘idealismo’ e ‘sentimentalismo’. De certa forma, reler Kanafani, à semelhança do de Edward Said, mostra-nos como e porquê a atual estrutura ‘intelectual’ hegemônica, com a sua estrutura de dominação, não representa uma mudança radical em termos de relações com o ocupante israelense, mas uma modificação da mesma.

A consciência política deve começar por uma rejeição das condições impostas pela ocupação israelense à maioria dos palestinos e ainda mais crucialmente, uma rejeição das migalhas que são oferecidas como recompensa pelo bom comportamento a uma minoria seleta. Daí a necessidade de conhecermos as obras de Kanafani. 

OBRAS
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quarta-feira, 6 de julho de 2022

NOVE POETAS COLOMBIANOS * Enrique VILLAGRASA / Colômbia

NOVE POETAS COLOMBIANOS

Enrique VILLAGRASA

Encontramos a poesia que é justa e necessária para ler e reler (a que não se vende), porque cada nova leitura revela outros detalhes, outras imagens. E a poesia que esses nove escrevem, e não outros poetas, é para este verão, por mais quente que esteja. O verão é tempo livre e sem pressa: também é tempo de poesia. E ler ouvindo música (clássica ou não), junto a uma bela paisagem: mar ou serra, é sempre apreciado. Trazemos esses livros que, por sua sabedoria, qualidade e beleza, devem ser lidos com calma e na pendência de cada verso: nessa cumplicidade necessária: o leitor é sempre quem termina o poema. Nove livros que nos mostram uma nova forma de entender aquele sujeito lírico, plural e sempre complementar, dialogante e cúmplice, que se debate sobre a questão habitual, desde que se escreve poesia e filosofia: amor e morte. A poesia é nossa única alternativa à realidade, não há dúvida sobre isso.

Assim, uma poesia inusitada é o que os leitores encontrarão nesta coletânea de poemas, Cazadores de icebergs (Salto de pagina) de Alejandro Céspedes (Gijón, 1958). É, portanto, um livro para ler e reler e sua qualidade e beleza poética são tão deslumbrantes em todos os lugares. Céspedes é um poeta sábio, arriscado no que escreve e conheço sua obra, tanto na forma quanto na substância: na ética e na estética; singularidade e incrível habilidade verbal. Poemas comoventes, mas vitais. É uma coleção de poemas cheios de esplendor e desolação: fatalidade e culpa: medo e tremor: acaso e necessidade, talvez? / a um mecanismo quântico de solidão e medo”. seu último livro,Soy Lola Jerico ganhou o 42º Prêmio Ibero-Americano de Poesia Juan Ramón Jiménez (Conselho Provincial de Huelva-Fundação Zenobia-JRJ).

Dios en la ría (Bartleby) de Estefanía González (Grado, Astúrias, 1970), com um inteligente prólogo de Jordi Doce , onde diz que: a poetisa "escreveu um livro único e muito pessoal que dificilmente tem precedentes entre seus contemporâneos. " Uma poesia poderosa, uma tremenda pulsação entre a realidade imaginada e a realidade real: Corpo Nu de Inverno e Corpo de PaiUma poesia vívida, lúcida, transparente, que busca chegar à razão última da existência cotidiana, com metáforas surpreendentes. Saber que tudo é da memória, do olhar e da memória, daquele meio marinho ou não. Dividido em duas partes, o brilhante segundo clama pela presença da dor e da doença, neste caso centrada na figura poetizada do pai. Neste livro, esse jogo com o tempo me desperta a atenção, com Unamuno ecoa I kierkegaardnos/: “Estou tecendo meus tecidos/ de estremecer./ Tenho gosto na boca/ de medo”.

Wyoming (Animal Suspeito) de Jaime D. Parra , natural de Almeria (Huércal-Overa, 1952), com um sutil prólogo de Neus Aguado onde diz que "o livro é um caminho vital e espiritual apesar da morte". É a poesia que lembra Cirlot com sua Bronwynmas não é só isso, é navegar os limites da linguagem aqui em busca do outro: do seu exílio, da existência daquele tempo propício ao relacionamento e à cumplicidade. Poesia justa e necessária para este tempo da noite negra da alma. Uma poesia que a verdade não salva da ausência de poesia na existência. Hoje falta qualidade e beleza em todos os lugares. Precisamos de uma ascese sugestiva para chegar a uma mística de esplendor. Salto e desafio ai da beleza e atração do precipício, que Thanatos diria, ao vazio da fé, com esperança na linguagem mística do poeta, ele quer saber: sua poesia é filosofia em verso: "Uma morte nada mais é do que uma morte./ Mas depois de um incêndio?”

Quota de mal (Huerga y Fierro) é uma coleção madura de poemas e reivindicação da poesia. Este livro reúne o pensamento e a poética de Concha García de Córdoba(La Rambla, 1956): a coleção mais pessoal de poemas de um poeta único. Não é nem mais nem menos do que as perguntas, mais do que as respostas, que ele faz ao longo dos anos, numa vida dedicada à literatura, como a sua. Um vocabulário de cores e momentos e situações dá-nos conta a partir do seu olhar lírico, penetrante e irónico, das coisas que estão fora da nossa mente. A poesia de Concha García sempre nos revela, com seu olhar peculiar, toda a realidade que nos cerca. Ele é capaz e consegue elevar a anedota cotidiana, o momento, o acontecimento, à categoria de poesia, sem hesitação ou ornamentação, ou retórica possível. Versículos claros e concisos. Poesia trabalhada, lapidada, diamante. "Beira amada do mar / quando contemplo a tua extensão / não olho para trás".

Flores (Espasa) de Nieves Pulido (Madri, 1975) trouxe à mente estes versos de Juan Ramón : “Deus é azul. A flauta e o tambor / já anunciam a cruz da primavera. / Viva as rosas, as rosas do amor, / entre a verdura com o sol do prado!” No entanto, também me fizeram lembrar a poesia chinesa e japonesa, devido ao seu tema e estrutura; Além disso, as maravilhosas ilustrações de Ireland Tambascio ( Eire), que acompanham cada poema (42). Há a aparente simplicidade da poesia de Nieves Pulido em comparação com a variedade de recursos estilísticos que ela maneja, os motivos que usa em seus versos, como amor, tradição, natureza; bem como as fontes literárias nas quais o poeta se inspira (Notas ao final do livro); a limpeza de seu verso e a abertura para esses outros ideais literários: a busca da cumplicidade tensional entre paisagem e poema é uma de suas maiores conquistas: “Sentada / no galho de um carvalho / a lua cheia”.

A coragem de viver (Antologia de poesia de amor) (Olifante) de Ángel Guinda (Zaragoza, 1948-Madrid, 2022), cuja seleção com Nota ficou a cargo de Raquel Arroyoque destaca que o poeta: “criou esplêndidos poemas de amor; intensa (…) e sempre autêntica e sincera”. E se há poeta onde a vida e a poesia se entrelaçam, é em Guinda, e estes poemas o comprovam, onde se entrelaçam filosofia, existência e poesia, neste seu universo poético que é a sua obra que caminha para o outro. Solidão, velhice, esquecimento, tempo, dor, doença e tudo sempre temperado com amor. E tudo com linguagem simples com substância e com mil e uma nuances, das quais nos fazem pensar. Acho que Guinda via o amor como consequência de seu desejo poético de verdade, paz e justiça. Bem, para ele, não era uma causa ou um imperativo: “Agora estamos no escuro. / Abrace o tremor”.

É sempre uma alegria ler a poesia de Manuel Álvarez Ortega (Córdoba, 1923-Madrid, 2014) e nesta ocasião ainda mais antes de todos doerem. Antologia poética multilíngue (Devenir), em edição e epílogo de Guillermo Aguirre e com prólogo de Rosa PeredaEssa homenagem ao poeta existencialista e tradutor traduzido é ler seus poemas em português brasileiro; em italiano; em romeno; Francês; Turco; português; Alemão; chinês mandarim; Hebraico; Sérvio; Dinamarquês; checo; basco; Russo; Húngaro; catalão e inglês. Gosto de ler suas grandes metáforas nessas outras línguas. Pois bem, a sua poesia é uma aposta ética e estética onde há e conhecer, conhecer e explicar a morte e o amor, a evolução telúrica da existência humana, é a ideia, e tudo com uma cadência singular e significativa. Só desejo que a poesia deste singular poeta seja (re)lida! "Um pouco antes do amanhecer, no limite do terror, os amantes se afastam do remorso negro."

Enfim a justa e necessária poesia daquele jovem poeta cubano Severo Sarduy (Camagüey, 1937-Paris, 1993), que tanto surpreendeu, da mão amiga e inteligente do professor Enrico Mario Santí , que cuidou da edição e requintada prólogo de O silêncio que não morre, 1953-1964 (Huerga e Fierro). O volume está dividido em três partes: Camagüey (1953-1955), Havana (1956-1959) e Atlântico (1959-1964), além de um apêndice, variantes, fac-símiles, álbum de fotos, notas e agradecimentos devidos, quanto à irmã de a poetisa Mercedes Sarduy . Na terceira parte estão os renomados Poemas Bizantinos,"A última das sequências que o jovem Sarduy ensaia depois de vários anos longe de seu país, sua linguagem e a prosódia tradicional com a qual trabalhou em sua poesia anterior." Versículos da estatura de “MAS sobre estas pedras / soprará o vento da ira, / o pó da ira e da morte / secarão os jardins”.

Memorial da Arte da Seda. Antologia Apócrifa (Carena) de Pedro Rodríguez Pacheco(Sevilla, 1941) é um exercício poético sublime, tanto ético como estético, e com códigos próprios do poeta, para com os amigos, com afecto e cordial amizade. Este poeta sevilhano tem uma obra tão pessoal, singular e original, que mostra que é um poeta culto e heterodoxo, de ecos barrocos, que canta e conta a vida, o amor, a sua paixão e o seu erotismo em imagens totalmente expressivas: beleza e qualidade , que seda. Um poeta clássico de hoje, vivendo o presente. A poesia esculpida nesse pulso contínuo com a linguagem é muito atraente. A antologia está dividida em três partes significativas, que incluem um pouco mais do que essas 300 páginas. Não deixe de ler o seu prolegómeno, para melhor ler e compreender versos tão sedosos e delicados como estes: “A intenção do fogo é tão vasta, / que a minha caligrafia, quando inflamada pelas chamas, 

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domingo, 3 de julho de 2022

A morte de Walter Benjamin e a lição da esperança *Peter Szondi & Vagner Felipe Kuhn / RS

A morte de Walter Benjamin e a lição da esperança
Vagner Felipe Kuhn / RS

Seguindo a Rodovia N-260 no norte da Espanha, região da Catalunha (ou país Catalunha, para os que, como eu, reconhecem sua independência), antes de chegar à fronteira com a França, está a cidade de Portbou. Ela está em uma pequena enseada que tem, em sua extremidade esquerda, no lado francês, um bunker alemão da Segunda Guerra Mundial. A ditadura de Franco, na Espanha, tornou o país um aliado, razão pela qual não foi invadido.

Acompanhando o caminho da Rodovia N-260, há uma estrada de ferro, sendo que a pequena localidade de Portbou tinha uma estação que também era um ponto de controle da fronteira, parada obrigatória para muitas pessoas que fugiam do conflito. Em setembro de 1940, um grupo de pessoas tentou atravessar para a Espanha, dentre os quais estava o judeu Walter Bendix Schönflies Benjamin (filósofo, crítico literário, tradutor e ensaísta).

Walter Benjamin estava sendo auxiliado remotamente por outro nome conhecido, Theodor Adorno, que havia providenciado documentos para que, passando pela Espanha, ele chegasse até os Estados Unidos da América. Tudo isso está narrado na obra “Minha travessia dos Pirineus”, de Lisa Fittko, que dedica um capítulo a Walter Benjamin.

Temeroso de que o fato de ficar retido em Portbou pela polícia espanhola poderia significar a deportação para França ocupada pelos nazistas, no dia 26/09/1940, Walter Benjamin cometeu suicídio, ingerindo uma grande quantidade de morfina. No dia seguinte, a autorização para ingresso na Espanha foi concedida e os companheiros de fuga seguiram viagem.

No alto de uma colina, de frente para o oceano e para as ruinas do bunker alemão, está enterrado Walter Benjamin. Ali fica o cemitério da cidade e a capela de Sant Crist. Definitivamente, um dos lugares mais belos e tristes que já conheci.

Em vida, ele escreveu sobre “o poder da narração e das palavras sobre o corpo” e morreu vencido pela desesperança, um dia antes de ser concedida a autorização que representava um caminho para liberdade. Trata-se de uma vida que se converteu em uma teoria sobre a necessidade de esperança.

Mesmo um dos mais importantes pensadores da modernidade, que aprofundou como poucos a compreensão da comunicação na história e na cultura, foi vencido pelas palavras de desesperança. Em sua carta de suicídio, a primeira frase bem poderia ser a última, porque ela demonstra o apagar de uma vida: “Em uma situação sem saída, não tenho escolha senão terminar”.

Essa não é uma reflexão sobre a morte ou a condenação da atitude de Walter Benjamin, mas a constatação de que a esperança é uma utopia necessária. E que a vida pode, constantemente, surpreender até mesmo aquelas pessoas acostumadas à tragédia.

A esperança não é alienação, porque ela não sobrevive na mentira. A esperança não é a certeza, porque ela não existe para deixar qualquer pessoa inflexível. A esperança não é religião, embora muitas religiões a tenham no centro de suas doutrinas. A esperança não é somente razão, porque a lógica facilmente pode ser manejada para nos trair. A esperança não é euforia, porque a euforia está destinada a se abrandar. A esperança não é a prevalência do bom sobre o ruim ou do bem sobre o mal, porque o bom e o bem podem emergir até mesmo do ruim e do mal.

Não me atreverei a dizer o que é a esperança, pela simples razão dela representar uma espécie do gênero utopia - um estado ideal das coisas. Por outro lado, ouso difundir um alerta: cultive sua esperança, em uma situação limite, ninguém poderá fazer isso por você. Cada um de nós tem a capacidade de ter esperança.

Como citar: KÜHN, Vagner Felipe. A morte de Walter Benjamin e a lição da esperança. Tribuna da Produção, Palmeira das Missões, p. 7, 03 novembro 2017. ORCID-ID: https://orcid.org/0000-0003-4259-4591
Esperança no Passado –Sobre Walter Benjamin
Peter Szondi

Walter Benjamin inicia seu livro de memórias, Infância Berlinense por volta de 1900, com as seguintes frases:

Não saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se per- de numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve soar para aquele que se perde como o es- talar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um desfiladeiro. Essa arte aprendi tardiamente; ela tornou real o sonho cujos labirintos nos mata-borrões de meus cadernos foram os primeiros vestígios. Não, não os primeiros, pois houve antes um labirinto que sobreviveu a eles. O caminho a esse labirinto, onde não faltava sua Ariadne, passava por sobre a Ponte Bendler, cujo arco su- ave se tornou minha primeira escarpa. Perto de sua base ficava a meta: Frederico Guilherme e sua rainha Luísa. Em seus pedestais circulares erguiam-se acima dos can- teiros como que enfeitiçados por curvas mágicas inscritas na areia à sua frente por uma corrente d’água. Contudo, mais do que àqueles soberanos, voltava-me aos pedestais, pois o que acontecia sobre eles, mesmo que obscuro em relação ao contexto, estava mais próximo no espaço. Des- de logo percebi que havia algum significado nesse labirin- to, pois aquela esplanada ampla e banal por nada deixava transparecer que ali, isolada a alguns passos da avenida dos coches e carros de aluguel, dormitava a parte mais notável do parque. Disto recebera um sinal já muito cedo. Aqui mesmo ou perto, Ariadne deve ter assentado seu leito, em cuja proximidade compreendi pela primeira vez, e para nunca mais esquecer, o que só mais tarde me coube como palavra: Amor.1

A Infância Berlinenseapareceu após os anos 1930. Parte dela foi publicada por Benjamin em jornais; no seu conjunto, a obra apareceu pela primeira vez em 1950, dez anos após a morte de Benjamin. Esse livro, uma das mais belas composições em prosa do nosso tempo, permaneceu quase desconhecido. Com menos de setenta páginas, na edição em dois volumes dos escritos de Benjamin, aInfância Berlinense consiste em miniaturas que evocam, uma a uma, objetos, interiores, ruas, pessoas. É o que dizem seus títulos: Coluna da Vitória, Portão de Halle, Loggias, Partida e Regresso, Panorama Imperial. 

Não há dúvida de ....

(13

 Hoffnung Im Vergangenen – Über Walter Benjamin. In Peter Szondi. Schriften II. Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1996.
1 Walter Benjamin. Infância Berlinense por Volta de1900, in: Gesammelte SchriftenIV-1, p.
237. Tradução brasileira de José Carlos Martins Barbosa em: Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo, Brasiliense, 1997, pp. 73-4. Para a citação de textos de Benjamin utilizaremos as tradições disponíveis em português, fazendo, eventualmente, as alterações que julgarmos necessárias. (N.T.)
2 Theodor W. Adorno, Im Schatten junger Mädchenblüt,e in: Noten zur Literatur, Gesammlete Schriften 11.
Frankfurt a. M. 1974, P. 670.
3 “Um livro de grande importância é esse No Caminho de Swann de Marcel Proust (pela editora Bernard Grasset); um livro notável, imncomparável, de um novo autor; seria uma tradução admirável caso fosse realizada sem falta. Sem duvida são 500 páginas da expressão mais própria, e dois volumes tão fortes quanto esse ainda estão para sair!” Carta de 3 de fevereiro de 1914, in : Rainer Maria Rilke, Briefe na seinen Verleger (Cartas ao seu Edito)r. Leipzig, 1934, p. 216.)

....

que quem se propõe a escrever sobre tais coisas está, como Proust, de quem Benjamin foi tradutor, em busca do tempo perdido. Pode- se entender, assim, por que Benjamin, na época em que escrevia a Infância Berlinense, pode dizer a um amigo que “quando tinha que traduzi-lo, desejou não ler mais uma palavra sequer de Proust, pois caía, como um viciado, em uma dependência que impedia sua pró- pria produção.”2 Essa frase testemunha mais que o simples efeito do romance de Proust sobre Benjamin. Ela parece indicar uma afinidade eletiva, sem a qual a leitura da obra estrangeira dificilmente teria sido capaz de assumir o lugar elaboração da própria obra. A relação entre Benjamin e Proust não se esgota, assim, apenas na história da recepção de Em Busca do Tempo Perdido, da qual talvez nos permita- mos partir, ao tentarmos dizer algo sobre a particularidade da obra benjaminiana.

Nesse contexto, a história da recepção de Proust, na Alemanha, não deixa de merecer atenção. Ela está ligada aos nomes de Rilke, Ernest Robert Curtius e Walter Benjamin. O poeta, o erudito e o filósofo, que também era poeta e erudito, pertencem não apenas aos primeiros que, na Alemanha, estiveram sob o efeito da obra de Proust, mas também aos que intercederam a favor dela. Em 1913, Rilke mal havia terminado de ler o primeiro volume da Recherchee já tentava convencer seu editor, certamente sem sucesso, a adquirir os direitos para a tradução alemã.3 Em 1925, Ernest Robert Curtius dedicou um extenso ensaio a Proust e, com sua crítica afiada ao recém-publi- cado primeiro volume da edição alemã, permitiu que o trabalho de tradução chegasse à mão de profissionais. Os volumes seguintes fo- ram traduzidos por Franz Hessel e por Walter Benjamin, do qual, em 1929, apareceu o significativo estudo Para a Imagem de Proust.Pouco depois, porém, a recepção da obra de Proust na Alemanha foi inter- rompida com força. Os manuscritos das partes ainda não publicadas da tradução se perderam, e a compreensão da obra acabou soterrada. O seu lugar foi, então, ocupado por um juízo do qual as seguintes palavras de Kurt Wais dão uma amostra:

Uma verdadeira explosão das formas fixas e arraigadas do romance (...) foi empreendida por dois cidadãos não de todo franceses, Marcel Proust, um meio-judeu, e An- dré Gide, educado no mais sombrio calvinismo. Proust esmigalha a personalidade de seus personagens em seus traços singulares inteiramente contraditórios. Quem não compreendeu a si mesmo é incapaz de exercer influência sobre os outros. As cem figuras permanecem esquemas que ele, em seu monólogo de nervos Em Busca do Tempo Perdido (inchado dos três volumes planejados para treze volumes), silenciosamente explora. Homens efeminados, mulheres masculinizadas que ele circunda com o bate- papo sobre picuinhas de suas freqüentes e intermináveis comparações e interpreta com sua ultra-inteligência tal- múdica. O ar ruim de um aposento sem luz, de doente, os quinze anos de incubação desse maldoso e delicado mexeriqueiro, cujo interesse completo se volta para a sua admissão pelas camadas sociais fechadas a ele; a micros-copia curiosa dos problemas da puberdade, e o pântano da perdição sexual prazerosamente desviante que Proust tinha em comum com muitos dos beletristas judeus da Europa ( ), tudo isso permitiria ao leitor atual, que não é um neurologista, afastar-se dessa obra.4

Se a questão da recepção de Proust vai, por um lado, além do âmbito da ilusão ideológica, a qual está por demais presente nas co- nexões reais, como se fosse dado a Proust o direito ao esquecimen- to – também Benjamin encontrou sua morte fugindo da Gestapo

–, por outro lado, a questão remete ao interior da obra. No último volume, no qual o herói se decide a escrever o romance que o leitor tem em mãos, nesse volume em que o livro como que se consuma e o medo do começo se une de modo inesquecível ao triunfo da con- clusão, aí também é questionada a peculiaridade do que foi escrito e da obra que está sendo escrita; o particular efeito que a obra deverá produzir não é o ponto menos importante desse questionamento. Aí se lê (após a famosa passagem em que a obra é comparada a uma catedral):

Mas, para voltar a mim, pensava mais modestamente em meu livro, e seria inexato dizer que pensava naqueles que o leriam, em meus leitores. Pois, eles não seriam, segundo

o que eu disse, meus leitores, mas leitores de si mesmos, não sendo meu livro mais que uma dessas lentes de au- mento, como as que o dono da loja de instrumentos óp- ticos de Combray oferecia a um freguês; meu livro, graças ao qual eu lhes forneceria o meio de lerem a si mesmos.5

Sem conhecer essas frases, Rilke mostrou-se bem cedo um lei- tor de si mesmo, tal como Proust o imaginou. O poeta que poucos anos antes havia concluído as Anotações de Malte Laurids Briggeera, certamente, um leitor predestinado de Proust. Mas, sua própria obra se diferencia da Recherche,em um ponto essencial. Em oposição à tese de Proust da rememoração involuntária, da mémoire involuntaire, Rilke apresenta a consciente e intensa tentativa de “realizar” (leisten) novamente a própria infância – uma tentativa que ele, em retrospecto, considera malograda, pois no lugar da própria infância é a do herói imaginário Malte que surge. A primeira vez em que Rilke foi um leitor de si mesmo talvez tenha sido aquela em que leu o primeiro volume de Proust. É o que mostra uma passagem de sua corres- pondência do ano de 1914, uma recordação de infância, nas termas da Boêmia, escrita para Magda von Hattinberg, uma amiga a quem pouco antes Rilke havia mandado entusiasmado seu exemplar de No Caminho de Swann.6

É a fidelidade com que Rilke reproduz a imagem trazida pela
recordação que o aproxima de Proust. Nada ali é retocado: as passa- gens danificadas não são reparadas, as lacunas não são artificialmente preenchidas. Assim, o nome da moça de que se fala não é mencio-
.....

(
4 Kurt Wais, Französische und französisch-belgische Dichtun,g in: Die Gegenwartsdichtung der europäischen Völker, Hrsg. Kurt Wais. Berlin 1939, p. 214 ss. No prefácio, está escrito: “Também nossa escolha e julgamento encontram seus limites. São os elementos inatos do nosso ponto de vista natural do qual não nos envergonhamos.”

5 Marcel Proust, A la recherche du temps perdu.Ed. De la Pléiade. III, p. 1033.

6 Rainer Maria Rilke, Briefwechsel mit Benvenuta [Correspondência com Benvenuta]. Esslingen 1954, p. 58 e ss. Carta de 12 de fevereiro de 1914.

16

7 Benjamin, Infância Berlinense…, GS IV-1, p. 294. OE II, p. 132.
)

nado e os traços de seu rosto não são definidos; ela não é mais que uma figuraesguia, loira que surge e desaparece na recordação. Também o comportamento dela, na cena esboçada, desapareceu da memória de Rilke; e também não lhe é permitido perseguir seu riso, que ainda ressoa em seus ouvidos, pois quem diz que se trata mesmo do riso dela? Nas suas lacunas, o quadro testemunha a peculiaridade de seu pintor, que não é Rilke, mas a própria atividade de recordar, cuja predileção se volta para os elementos acústicos: ela transmite o sobre- nome por causa de seu encanto, mas deixa o primeiro nome escapar; ela conserva o riso, mas não a pessoa.

A presença de Proust nesse quadro não está somente na rapidez com que os esboços são traçados, sem a qual o Malte não seria pensá- vel, mas também nos cenários: o parque, o passeio. Conhecemos seu significado no romance de Proust. O parque de Tansonville com suas roseiras vermelhas, onde o jovem Marcel avista Gilberte pela primei- ra vez (a recordação de Rilke, inteiramente no espírito proustiano, foi possivelmente despertada pela leitura dessa cena), os jardins dos Campos Elíseos, nos quais ele a reencontra; eles são – juntamente com o passeio costeiro de Balbec, o reino de Albertine – os cenários mais importantes da Busca do Tempo Perdido de Proust. Da mesma maneira, se coloca no início do último volume, O Tempo Reecontrado, o reencontro com o Parque de Tansonville e, imediatamente antes do herói decifrar o enigma da recordação e do tempo, o reencontro com os jardins dos Campos Elíseos.

Não é por acaso que o livro que Benjamin escreveu como leitor

de si mesmo, a Infância Berlinense, também comece com a descrição de um parque, o Tiergarten. O fascínio de Benjamin por Proust é tão grande quanto a diferença entre uma coletânea de pequenos textos em prosa e o romance de três mil páginas de Proust. A frase: “Tal como a mãe, que em seu colo segura o recém-nascido sem acordá- lo, a vida age, durante muito tempo, com as recordações ainda ternas da infância.”7, remete à experiência central da obra de Proust: que durante anos tudo que era infância seja mantido próximo a alguém a fim de que, de repente e como que por acaso, lhe seja outra vez oferecido. Proust se recorda do episódio da mãe que, nas noites em que recebia convidados em casa, furtivamente ia ao quarto da criança para lhe dar boa noite, ou então da escuta atenta do rapaz ao barulho que, vindo do andar de baixo, faz com que um mundo estranho entre em seu quarto. Em Proust se encontra o modelo da preciosa e mítica elevação do recém-descoberto telefone; no uso das metáforas, a afini- dade, a influência entre os dois autores também se deixa comprovar. Mas dizer isso não nos leva muito longe, e também não se enfraquece a objeção segundo a qual tais confluências repousam sobre um mate- rial comum: a infância, a época do Fin de siècle e a tentativa de tornar ambas mais uma vez presentes.

Mas o tema de Proust e de Benjamin é realmente o mesmo? A

busca de ambos pelo tempo perdido se realiza com o mesmo intuito? Ou tal solo comum é pura aparência, sobre o qual se deve notar – pois ele poderia ser enganoso a esse respeito – que as duas obras nãoapenas não são afins, como se opõem diretamente entre si? Fosse esse o caso, a expressão de  Benjamin – o medo de cair, como um viciado, em uma tal dependência de Proust que lhe impediria a própria pro- dução – assumiria um sentido mais profundo, ou seja, expressaria an- tes o temor de que a fascinação por uma obra apenas aparentemente semelhante à sua o distanciasse de sua própria intenção. Apenas uma comparação mais exata entre elas pode responder essa questão.

O sentido da busca de Proust pelo tempo perdido é apontado expressamente no fim do livro. O momento em que Marcel, o herói autobiográfico do livro, reconhece esse sentido é o ponto culminante da obra: sobre ele a obra é ao mesmo tempo construída e consumada. Esse conhecimento possui uma dupla raiz, a qual se torna visível logo no início do livro: uma plena de felicidade e outra dolorosa.A primeira é a sensação de felicidade antes de tudo inexplicável que apreende o herói quando, uma noite, sua mãe lhe dá um pedaço de um bolinho – a madalena – mergulhado no chá. Uma vez que esse bolo lhe era dado com freqüência quando criança, seu gosto lhe oferece mais uma vez o mundo inteiro da infância. A outra é o sobressalto, a suspeita terrível e dolorosa que lhe é comunicada por seu pai, quando diz que ele não estava fora do tempo, mas submetido às suas leis. Essas duas experiên- cias, a felicidade e o espanto, são reconhecidas no seu entrecruzamento numa das últimas de suas vivências. O motivo da sensação de felicidade numa experiência é a libertação do medo da outra:

...essa causa, eu a adivinhava comparando as diversas im- pressões bem aventuradas, que tinham em comum o fato de eu experimentá-las simultaneamente no momento atual e no momento distante, fazendo o passado permear o pre- sente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, o ser que então em mim gozava dessa impressão a gozava naquilo que tinha de comum com um dia antigo e com o agora, nisso que ela tinha de extratemporal, um ser que só aparecia quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado, se con- seguia situar no único meio onde se poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do tempo.8

Proust sai em busca do tempo perdido, que para ele é o passado, para, no reencontro com esse tempo, na coincidência de passado e presente, escapar do círculo mágico do próprio tempo. Para Proust, a busca do tempo perdido como passado tem como meta a perda do tempo enquanto tal.

Não é isso o que ocorre em Benjamin. A intenção evocada na Infância Berlinensese manifesta a partir de uma caracterização comum a muitos dos lugares, pessoas e acontecimentos que são objeto de cada miniatura. Lembramo-nos da descrição do Tiergarten, do vagar diante dos pedestais das estátuas reais. “Aqui mesmo ou perto, Ariad- ne deve ter assentado seu leito, em cuja proximidade compreendi pela primeira vez, e para nunca mais esquecer, o que só mais tarde me coube como palavra: Amor.”9

17

8 Proust, op, cit., p. 871.
Tradução, p. 152.
9 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 237. OE II, p. 74.

18

10 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 250. OE II, pp. 87-8.
11 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 273. OE II, p. 111.
12 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 269. OE II, pp.

107-8.

13 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1,p. 247 e ss. OE II, pp. 84-5.

Uma outra peça em prosa se chama A Despensa e começa com as frases: “Na fresta deixada pela porta entreaberta do armário da despensa, minha mão penetrava tal qual um amante através da noite. Quando já se sentia ambientada naquela escuridão, ia apalpando o açúcar ou as amêndoas, as passas ou as frutas cristalizadas. E do mes- mo modo que o amante abraça sua amada antes de beijá-la, aquele tatear significava uma entrevista com as guloseimas antes que a boca saboreasse sua doçura.”10

Outra, Duas Charangas, lembra o texto de Tiergarten. “Jamais a música possuíra algo de tal modo desumano e impudente como a da banda militar que temperava a torrente de pessoas que se empurra- vam na Aléia Laster, entre os cafés-restaurante do jardim zoológico. (...) Eis a atmosfera onde, pela primeira vez, o olhar do garoto procu- rou abordar o de uma passante, ao mesmo tempo em que se dirigia ainda mais solícito ao companheiro.”11

Aquilo a que esse texto remete se torna tema de uma outra recordação cujo título o chama pelo nome: Despertar do Sexo. O des- pertar aqui não é, porém, apenas do sexo. As expressões pela primeira vez e os primeiros vestígios, a antecipação que se consuma na metáfora

– pense-se na frase sobre a mão da criança que, pela fresta da porta da despensa, penetra como um amante através da noite –, dizem respeito não apenas ao amor, mas também a todas as camadas da pessoa e de seu ser.

Em A Febre, lê-se: “Estive muitas vezes doente. Daí talvez venha o que os outros qualificam em mim como paciência, mas que na verdade não se assemelha à virtude alguma: é apenas a tendência a ver se aproximar de longe tudo o que diga respeito a mim, tal como as horas se acercavam de meu leito de doente.”12

A doença da criança aqui é evocada porque ela pressagia um traço do caráter do adulto. Assim, em outro capítulo, Manhã de Inver- no, tem-se mais um traço manifesto de sua vida posterior: “A fada, por intermédio da qual alguém satisfaz um desejo, existe para todo o mundo. Só que são poucos os que sabem se lembrar do desejo for- mulado; por isso, só poucos são os que mais tarde, na própria vida, re- conhecem a satisfação proporcionada.” Segue-se a descrição de uma manhã de inverno, o penoso despertar do rapaz e o caminho para a escola. “Quando lá chegava, porém, no contato com meu banco, toda aquela fadiga, que parecia ter se dissipado, voltava decuplicada. E com ela o desejo de poder dormir até dizer basta. Devo tê-lo ex- perimentado milhares de vezes, e, mais tarde, de fato, ele se concre- tizou. Custou-me, porém, muito tempo para nisso reconhecer que fora sempre vã a esperança que eu nutrira de ter sustento e colocação garantidos.”13

Em O Jogo das Letras, Benjamin escreve: “Para cada pessoa há coisas que lhe despertam hábitos mais duradouros que todos os de- mais. Neles são formadas as aptidões que se tornam decisivas em sua existência. E, porque, no que me diz respeito, elas foram a leitura e a escrita, de todas as coisas com que me envolvi em meus primeiros anos de vida, nada desperta em mim mais saudades que o jogo das

letras.” E após tê-lo descrito: “A saudade que em mim desperta o jogo das letras prova como ele foi parte integrante da minha infância. O que busco nele, na verdade, é ela mesma: a infância por inteiro, tal qual a sabia manipular a mão que empurrava as letras no filete, onde se ordenavam como uma palavra. A mão pode ainda sonhar com essa manipulação, mas nunca mais poderá despertar para realizá-la de fato. Assim, posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo.”14

Tiergarten, despensa, jogo de letras – Benjamin reconhece ne- les prenúncios e primeiros vestígios de sua vida posterior. Mas seu olhar recordativo encontra também aquilo em que não a sua própria figura, mas sim o meio histórico-social é reconhecido pela primeira vez, um meio que certamente influencia Benjamin e que deveria tornar-se objeto de seu pensamento. Sob a ambigüidade do título Reunião (Gesellschaft)15 é descrita uma noite em que seus pais ofe- recem uma recepção. O jovem ouve primeiro os convidados, suas batidas na campainha e sua entrada. “Então vinha o momento no qual a reunião, mal começara a se formar, já de novo parecia fenecer. Na verdade, os convidados apenas se haviam retirado para aposentos mais afastados para aí se diluírem em meio às borbulhas e resíduos dos muitos passos e conversas, tal como um monstro marinho que, apenas lançado à terra pela ressaca, busca abrigo no lodo úmido da costa. E como o buraco que ele havia cavado pertencia à minha clas- se, travei conhecimento naquela noite com ela pela primeira vez. Ela não me pareceu suspeita. Eu sentia que aquilo que então preenchia os aposentos era impalpável e escorregadio e estava sempre pronto a estrangular aqueles que flanavam a seu redor; cega diante de seu tempo e de seu lugar, cega diante da luta pela subsistência, cega diante da ação.A casaca impecável que meu pai trajava naquela noite me pa- recia uma couraça, e descobria agora que seu olhar que, há uma hora ainda, deixara vagar pelas cadeiras vazias, estava armado.”16 Novamen- te o uso das metáforas desempenha um papel especial: a comparação reúne presente e futuro, a percepção da criança e o reconhecimento do adulto.

No livro, também se fala daqueles que o jovem não teve chance de conhecer na reunião de seus pais:“Em minha infância fui prisionei- ro do antigo e novo Oeste. (...) Os pobres – para as crianças ricas de minha idade – só existiam como mendigos. E foi um grande avanço em meus conhecimentos quando comecei a entender a origem da pobreza na ignomínia do trabalho mal remunerado. Isso ocorreu num breve escrito, talvez o primeiro que escrevi inteiramente para mim.”17

Já citamos bastante e precisamos agora apenas de um pouco de comentário. Os próprios capítulos da Infância Berlinense respondem à questão da diferença entre a busca de Proust e a de Benjamin pelo tempo perdido. Proust busca o passado para, na sua coincidência com o presente – uma coincidência acompanhada pelas respectivas experi- ências de cada momento – escapar do tempo, e isso significa, antes de tudo, escapar do futuro, de seus perigos e ameaças que, em último caso,
(
19

14 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 267 e ss. OE II, p. 105.
15 Gesellshaft pode significar tanto uma reunião, um sarau, como é vertido na tradução brasileira da Infância, quanto sociedade. (N.T.)
16 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p 264 e ss. OE II, pp. 102-3.
17 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1,, p. 287. OE II, p. 125.

20

18 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 256. OE II, p. 94.
19 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 255. OE II, p. 93.
20 Benjamin, Infância Berlinense, GS IV-1, p. 251. OE II, p. 89.
21 Benjamin, Rua de Mão Única, GS IV-1, p. 142. Tradução brasileira de Rubens Rodrigues Torres Filho em OE II, p. 62.
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são a própria morte. Benjamin, ao contrário, busca no passado o futuro mesmo. Os lugares para os quais sua rememoração busca encontrar o caminho carregam quase todos (como ele uma vez escreve na Infância Berlinense) os traços do porvir.18 Não por acaso sua recordação encontra uma figura da infância no ofício de vidente, que prevê o futuro1.9 Proust es- cuta as ressonâncias do passado, Benjamin os prenúncios de um futuro que desde então tornou-se ele mesmo passado.Ao contrário de Proust, Benjamin não quer se libertar da temporalidade, não é sua intenção contemplar a coisa em sua essência anistórica; ele aspira ao conheci- mento e à experiência histórica; o passado ao qual ele se volta não é fechado, mas aberto e guarda junto a si a promessa do futuro. O tempo verbal de Benjamin não é o pretérito perfeito, mas o futuro do pretéri- to em todo o seu paradoxo: ele é futuro e, mesmo assim, passado.

Benjamin era consciente dessa diferença que faz de suaInfância Berlinense um contraponto, no sentido literal e expressivo da palavra, à “Infância Parisiense” de Proust? Uma página de seu livro, talvez a mais significativa, parece querer apreender essa oposição: “Já foi des- crito muitas vezes o déjà vu. Será tal expressão realmente feliz? Não se deveria antes falar de acontecimentos que nos atingem na forma de um eco, cuja ressonância que o provocou parece ter sido emitida em um momento qualquer na escuridão da vida passada? Além disso, acontece que o choque com que um instante penetra em nossa cons- ciência, como algo já vivido, nos atinge, o mais das vezes, na forma de um som. É uma palavra, um rumor ou um palpitar, aos quais se confere o poder de nos convocar desprevenidos ao frio jazigo do passado, de cuja abóbada o presente parece ressoar apenas como um eco. Estranho que ainda não se tenha buscado o dublê desse êxtase: o choque com que uma palavra nos deixa perplexos tal qual um regalo esquecido em nosso quarto. Do mesmo modo que esse achado nos faz conjeturar sobre a desconhecida que lá esteve, existem palavras ou pausas que nos fazem pensar na estranha invisível, ou seja, no futuro que ela esqueceu junto de nós.”20

Benjamin fala aqui de Proust ou de si mesmo? Que ele descreva o déjà vu, embora este não desempenhe nenhum papel na Infância Berlinense, não tem tanta importância. O que se tem aqui não são ape- nas circunstâncias que se apoderam dele, sem que o choque que elas provocam tenha nome; para a determinação dessa oposição, é neces- sário perceber que a elaboração de definições metafóricas ambíguas, às quais Benjamin consagra passagens magistrais de sua prosa, consiste num dos artifícios estilísticos preferidos por ele. Em tais passagens, sua força de pensamento e sua força de imaginação se apresentam como a mesma potência. É indiscutível, porém, que a desconsideração do déjà vu forma tanto a base do mundo proustiano quanto sua imagem oposta, a da Infância Berlinense. O momento que deve ser evocado aqui, e que é marcado por um tipo de choque tão diferente do de Proust, é o do trabalho da rememoração benjaminiana; uma frase do livro Rua de Mão Única diz isso de forma mais nítida: “Como raios ultravioletas, a recordação mostra a cada um, no livro da vida, uma escrita que, invisível, na condição de profecia, glosava o texto.”21

Na heterogeneidade das vivências temporais de Proust e Benja- min está fundada também a diferença formal de suas obras: o abismo que separa o romance de três mil páginas da coletânea de pequenas peças em prosa. O poeta do déjà vu está em busca de cada um dos momentos em que as vivências da infância se iluminam mais uma vez: é assim que ele procura narrar toda uma vida. Benjamin, ao contrário, pode, a partir de sua vida posterior, avistar sua infância e se dedicar à evocação daqueles instantes em que um prenúncio do futuro se esconde. Não por acaso, entre seus objetos preferidos esta- vam aquelas esferas de vidro que encerram uma paisagem coberta de neve, e que, quando sacudidas, despertam para uma nova vida. Para o alegorista Benjamin, não é a apresentação de algo do passado que essas esferas, como um envoltório de relíquias, podem ter protegido dos acontecimentos externos, mas do futuro. Elas se assemelham às vivências da Infância Berlinense e às miniaturas nas quais elas foram apreendidas.

Mas não se trata aqui de perguntar apenas pelas relações entre as intenções de Proust e Benjamin, mas também pelo sentido da própria busca de Benjamin do tempo perdido, a qual é uma busca do futuro perdido. Isso nos leva da Infância Berlinensepara suas obras histórico- filosóficas: aqui o tema reaparece num contexto objetivo sobre o qual o próprio Benjamin fornece uma explicação. Em face disso, o pano de fundo biográfico da Infância Berlinensesó poderia ser compreendi- do por inteiro caso a correspondência de Benjamin fosse conhecida. No posfácio escrito por seu amigo Theodor W. Adorno, esse pano de fundo é identificado a partir de um conhecimento pessoal:“O ar que sopra nos cenários que as exposições de Benjamin se preparam para despertar é mortal. Sobre eles recai o olhar do condenado.”22

O ocaso, cujo conhecimento impediu Benjamin de dirigir seu olhar ao futuro e que só lhe permitiu ver o futuro ali onde já era pas- sado, não diz respeito apenas a Benjamin: ele é o ocaso de sua época. A Infância Berlinense, como o posfácio de Adorno indica, pertence ao âmbito de uma história originária da modernidade, na qual Benjamin trabalhou durante seus últimos quinze anos de vida. Os próprios capí- tulos da obra autobiográfica indicam a passagem para essa investigação histórico-social, como se pode ler no Panorama Imperia,l ao evocar pre- cursores ou formas primitivas do que é a técnica hoje. Como amplo fundamento, essa seria a temática do livro sobre Paris, a Capital do Século XIX, do qual existem apenas estudos preparatórios e fragmentos. Ape- sar disso, a conclusão de Rua de Mão Única, livro publicado em 1928, mostra como Benjamin compreendeu a era da técnica:

Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primei- ra vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensa- va resgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças
(
21

22 Theodor W. Adorno, Posfácio a W. Benjamin, Berliner Kindheit um 1900, Frankfurt 1975, p.
169 e ss. (esse prefácio não está publicado na volume utilizado dos escritos reunidos de Benjamin. N.E.)

22

23 Benjamin, Rua de Mão Única,
GS IV-1, p. 147. OE II, p. 69.
24 Th. W. Adorno, Minima Moralia, Frankfurt 1969, p. 333. Tradução brasileira de Luiz Bicca: Mínima Moralia. São Paulo, Ática, 1993, pp. 215-6.
25 Benjamin, Rua de Mão Única, GS IV-1, p. 120. OE II, p. 43.
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pelos adultos como o sentido da educação? Não é a edu- cação, antes de tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de domina- ção, a dominação das relações entre gerações, e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e hu- manidade.23

O conceito de técnica de Benjamin não é crítico, mas utópico. O que é criticado é a traição da utopia ocorrida no momento de efetivação da idéia de técnica. A atenção de Benjamin não se dirige às possibilidades da técnica tal como ela ainda existe hoje, pois essa é em grande parte apenas o ocaso possível; ele se dirige ao tempo em que a técnica enquanto tal apresentou pela primeira vez a possibilidade, na condição de sua idéia verdadeira, de, nas palavras de Benjamin, ser não a dominação da natureza, mas a dominação das relações entre natureza e humanidade, a qual ainda estava no horizonte futuro. É assim que o espírito utópico de Benjamin se aproxima do passado. Esse era o pres- suposto da planejada história originária da modernidade.A tarefa é tão paradoxal quanto a união de esperança e desespero que se manifesta nela. Embora o caminho para a origem seja um caminho de volta, ele é um retorno a um futuro que, embora já passado e pervertido na sua idéia, conserva mais promessas do que a imagem atual do futuro.

Esse caminho paradoxal do historiador, que confirma de um modo surpreendente a definição do historiador dada por Friedrich Schlegel, como um profeta às avessas, diferencia Benjamin daquele filósofo que, ao lado de Ernst Bloch, lhe é mais próximo:Theodor W. Adorno. Em Adorno, o espírito escatológico se efetiva de uma ma- neira não menos paradoxal precisamente na crítica da própria época, na análise da vida danificada. Adorno escreve no final das Mínima Moralia: “A filosofia, segundo a única maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção. O conhecimen- to não tem outra luz além daquela que, a partir da redenção, dirige seus raios sobre o mundo: tudo o mais exaure-se na reconstrução e permanece uma parte da técnica. Seria produzir perspectivas nas quais o mundo analogamente se desloque, se estranhe, revelando suas fissuras e fendas, tal como um dia, indigente e deformado, aparecerá na luz messiânica.”24

Voltemos às frases de Benjamin das quais tínhamos partido. Agora é compreensível esse estranho desejo de perder-se em uma cidade, essa arte que, como Benjamin escreve, requer instrução, e que ele só aprenderia tardiamente. Deve-se reconhecer que é a arte de uma época tardia. Em Rua de Mão Única, encontramos sob o títu- lo Objetos Perdidosa seguinte colocação: “Uma vez que começamos a nos orientar no local, aquela imagem primeira não pode nunca restabelecer-se.”25 Por causa dessa primeira imagem, a qual não deve ser perdida pois esconde o futuro, a capacidade de se perder se trans- forma em desejo.

Esses motivos da Infância Berlinense também são familiares aos textos históricos, filosóficos e políticos de Benjamin. Eles tornam vi- sível uma relação, que não deve surpreender, entre a obra literária au- tobiográfica e uma obra teórica como o livro sobre o drama barroco. Quando Hegel, nos Cursos de estética, fala da “cega erudição que passa pela profundidade claramente expressa e apresentada sem, contudo, apreendê-la”26, é de se perguntar se a profundidade não deve ser per- dida a cada vez que, na sua cientificidade falsamente compreensiva, faz abstração de sua própria experiência. A verdadeira objetividade está vinculada à subjetividade. Certa vez, Benjamin contou que a tese fundamental de seu livro sobre A Origem do Drama Barroco Alemão, uma obra sobre a alegoria barroca, surgiu ao ver, em um teatro de marionetes, um rei sentado com a coroa mal colocada na cabeça.27

Em face das grandes dificuldades que os textos teóricos de Benjamin colocam ao leitor, podemos passar por alto pelo restante de sua obra apenas para dar indicações ou orientações sobre uma região cujo conhecimento não pode ser adquirido com abreviações tiradas à força.

A frase de Rua de Mão Única, segundo a qual a recordação mos- tra a cada um, no livro da vida, uma escrita que, invisível, na condi- ção de profecia, glosava o texto, retorna, na condição de filosofia da história, nas teses Sobre o Conceito de História, um texto escrito por Benjamin pouco antes de sua morte. Aí está escrito: “O passado traz consigo um índice secreto que o impele à redenção.”28

Diante da visão da vitória do nacional-socialismo e da tentati- va frustrada da social-democracia de resistir a ele na Alemanha e na França, Benjamin concentra seus últimos esforços na elaboração de um novo conceito de história, capaz de romper com a crença no pro- gresso e com a marcha do gênero humano no interior de um “tempo homogêneo e vazio”.29 Benjamin percebe que a chance do fascismo “consiste, não por último, em que seus adversários afrontam-no em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica”. E re- conhece o auto engodo da social-democracia na “ilusão de que o tra- balho industrial, em decorrência do progresso técnico, representava uma conquista política.” “O espanto em constatar que os episódios que vivemos sejam ainda possíveis, no século XX, não é nenhum espanto filosófico. Ele não está no início de um conhecimento, a menos que este consista em mostrar que a representação da história donde provém aquele espanto é insustentável.”30 O novo conceito de história de Benjamin se fundamenta na dialética entre futuro e passado, entre messianismo e rememoração. “A origem é o alvo” – as palavras de Karl Kraus são o lema de uma dessas teses.

Com isso remetemo-nos não apenas à história originária da modernidade, na qual Benjamin trabalhava naquela mesma época, mas também ao livro sobre A Origem do Drama Barroco Alemão, o qual havia sido esboçado mais de vinte anos antes, em 1916. A partir de premissas inteiramente diferentes – a problematização dos conceitos anistóricos de gênero literário pelas poéticas – Benjamin chegou à seguinte formulação:

23
(
26 Hegel, Aesthetik, Jubiläunsausgabe, Bd. 13, p. 342.
27 Com base em uma informação de Theodor W. Adorno.
28 Benjamin, Sobre o Conceito de História.GS I-2, p. 693. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet em Obras Escolhidas
I. Magia e Técnica, Arte e Política.
São Paulo, Brasiliense, 1995,
p. 223. Para as citações desse texto utilizamos também uma tradução manuscrita feita por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Muller. (N. T.)
29 Benjamin, Sobre o Conceito de História, GS I-2, p. 701. OE I, p. 229.
30 Benjamin, Sobre o Conceito de História,GS I-2, p. 697. OE I, p. 226.

24

31 Benjamin, A Origem do Drama Barroco Alemão. GS I-1, p. 226. Tradução brasileira de Sérgio Paulo Rouanet: São Paulo, Brasiliense, 1984. pp. 67-8.
32 Benjamin, Sobre Alguns Temas em Baudelaire, GS I-2, p. 609.
33 Benjamin, Parque Central, GS I-2, p. 690.
34 Benjamin, Parque Central, GS I-2, p. 681.
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A origem, apesar de ser uma categoria totalmente históri- ca, não tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir a ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir a ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese. O originário não se encontra nunca no mundo dos fatos brutos e ma- nifestos, e seu ritmo só se revela a uma visão dupla que o reconhece, por um lado, como restauração e reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, como incompleto e inacabado. Em todo fenômeno originário se determina a forma sob a qual a idéia sempre volta a confrontar o mundo com o mundo histórico até ela se mostrar com- pleta na totalidade de sua história. A origem não surge dos achados efetivos, mas se encontra relacionada à pré- e pós-história dos mesmos. (...) O autêntico – a marca da origem no fenômeno – é objeto da descoberta, uma descoberta que está ligada de uma maneira única com o reconhecimento.”31

Entre a obra de juventude sobre a alegoria no drama barroco e os últimos estudos sobre Paris, a Capital do século XIX, cujo centro seria ocupado pela estátua de Baudelaire, existem também outras re- lações temáticas que dizem respeito tanto ao motivo da recordação em Proust quanto à Infância Berlinense.A categoria mais importante nesse contexto é a da experiência, cujo definhamento caracterizava, para Benjamin, a modernidade. Na obra de Proust, Benjamin enxerga a tentativa de “produzir, por meios sintéticos, a experiência sob as condições sociais atuais”32, enquanto em Baudelaire, “a recordação desaparece em favor das lembranças. Nele existem poucas recorda- ções da infância.”33 Na lembrança, porém, diz um outro fragmento do espólio, “se sedimenta a crescente auto-alienação do ser humano que inventariou seu passado como propriedade morta. No século XIX, a alegoria saiu do mundo exterior para se estabelecer no mun- do interior.”34 O inventário do passado, com o qual a alegoria barroca é transportada para o interior, é ao mesmo tempo, para Benjamin, o correlato pessoal para a concepção de história tradicional contra a qual ele se insurge nas sua teses sobre filosofia da história.

Para concluir, devemos falar ainda de uma última obra, uma coletânea de cartas que, acompanhada por um prefácio e por comen- tários de Benjamin, foi publicada, sob o pseudônimo de Detlef Holz, em 1936 numa editora suíça. São vinte e cinco cartas do período compreendido entre 1783 e 1883, escritas, entre outros, por Lichten- berg, Joahnn Heinrich Voss, Hölderlin, Goethe, David Friedrich Strauss, Georg Büchner e pelos irmãos Grimm. O volume se chama Alemães e deveria ser introduzido na Alemanha nacional-socialista sob esse título camuflado – como a ele se referiu Benjamin em uma carta – , uma intenção que certamente não deveria vingar em face da sinceridade do subtítulo. Este formula abertamente aquilo de que as cartas deveriam dar testemunho: De honra sem fama. De grandeza sem
pompa. De dignidade sem soldo.Trata-se de um livro sobre a burguesia
alemã. Mas nenhum monumento dourado é conferido a ela. O prefácio de Benjamin fala com frieza dos anos fundamentais nos quais a época encontrou seu fim de maneira nada bela. No sentido de uma pas- sagem do Drama Barroco, que concebe a origem como algo que emerge do devir e da extinção, é possível dizer que Benjamin quis indicar, com esse volume de cartas, a origem da burguesia alemã, uma origem que ainda continuava a lhe prometer o futuro.

Num antiquário de Zurique, foi encontrado no espólio da irmã de Benjamin um exemplar do livro com a seguinte dedicatória:Para Dora, essa arca construída segundo o modelo judaico – de Walter. Novembro de 1936.35 O que deveria ser salvo com o livro? Em que pensava Benjamin quando se recusou a emigrar alegando que havia “posições na Europa a serem defendidas”?36 O redentor só é compreensível no interior da concepção de história de Benjamin, a qual se transformou em literatura na Infância Berlinense. Podemos certamente relacionar a arca do volume Alemães com aquilo que está escrito nas teses So- bre o Conceito de História: “Apenas o historiador perpassado por essa convicção tem o dom de atear no passado a centelha da esperança: também os mortos não estarão seguros diante do inimigo se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”37 Benjamin não construiu essa arca somente para os mortos; ele a construiu por causa da promessa que encontrou em suas vidas passadas. Desse modo, sua arca não deveria salvar somente a si mesma. Ela partiu na esperança de alcançar também aquele que tomou por uma fértil inundação o que na verdade era o dilúvio.

Tradução: Luciano Gatti

35 Propriedade do Sr. Dr Achim von Borries.
36 Benjamin, Schriften II, Frankfurt a. M. 1955, p. 535 (nota biográfica de Friedrich Podszus).
37 Benjamin, Sobre o Conceito de História, GS I-2, p. 695. OE I, pp. 224-5.*