domingo, 19 de maio de 2024

O SURGIMENTO DAS FARC * German Castro Caycedo/Youtube - Felipe Andrés Pérez Cabrera

O SURGIMENTO DAS FARC
MARQUETALIA RAÍZES DA RESISTÊNCIA
A guerrilha na Colômbia

Por: Felipe Andrés Pérez Cabrera.

Com o passar dos anos, quando um projeto é iniciado, os propósitos podem se diluir se não for realizada uma campanha permanente de doutrina política. Das guerrilhas da Colômbia, a mais antiga é a FARC-EP, nasceu em 1964, de dois grandes líderes, Manuel Marulanda Vélez e Jacobo Arenas. Manuel Marulanda Vélez era um agricultor, abusado pelo governo colombiano, seus animais e terras foram roubados, ele foi expulso de sua querida região cafeeira, tudo isso ocorreu no marco da repressão do governo conservador contra os liberais. Marulanda, junto com um grupo de camponeses, tinha tendência liberal. Fundaram diversas repúblicas independentes, que diante da traição de um setor da liderança liberal e além da chegada de intelectuais como Jacobo Arenas, começaram a mudar. seu pensamento em relação ao comunismo. As FARC-EP como tais nasceram como uma guerrilha comunista, Jacobo Arenas foi o seu ideólogo, membro do Partido Comunista, que escreveu vários livros e textos com a história desta rebelião na Colômbia, além do seu pensamento político, um dos estes livros denominados: “Cessar Fogo, uma história política das FARC”, é uma obra necessária para compreender a história recente do nosso país.

Um camponês e um intelectual, com liderança conjunta, foram a força motriz daquela que seria a maior força insurgente do mundo no final do século XX. Com o governo Duque, que, como dizia o próprio Uribismo: “rasgaria o acordo de paz com as FARC”, iniciou-se um rearmamento de um setor da guerrilha, é preciso dizer que o Uribismo não se sente confortável com a paz, seu discurso de ódio baseia-se no confronto, sem o qual o seu dogma de morte não pode ser alimentado. É verdade que a frente Dagoberto Ramos em Cauca cometeu uma terrível injustiça, assassinando o líder indígena em praça pública, mas também é verdade que não podemos continuar a alimentar as forças reaccionárias do nosso país e o seu discurso de ódio.

Nenhum líder uribista tem filhos no exército, porém a guerrilha e o exército são formados pelos filhos da Colômbia. Os chamados dissidentes das FARC-EP, neste caso o autoproclamado Estado-Maior Central da EMC, devem compreender que devem entrar num diálogo permanente, enquanto estiverem presentes as condições de um governo algo democrático. Entendo quem diz que o atual governo não resolverá a terrível crise de desigualdade, de valores éticos e econômicos, que se geram ao colocar o capitalismo em prática, porém é hora de repensar a estratégia. Porque o Uribismo rearmou os dissidentes das FARC-EP, lembremos que se você quer saber o que pensa o embaixador dos EUA, veja o que pensa o Uribismo, já que são estes que ditam o seu dogma das trevas. El Uribismo (el imperialismo) rearmo las FARC porque son una fuerza política de ocupación, el objetivo es seguir dividiendo nuestro país, desde el golpe de Estado contra Simón Bolívar, que les salió bien tras la muerte del libertador, aprendieron a generar continuas protestas y enfrentamientos entre los colombianos, para dividirnos y no permitir nuestro progreso, la doctrina con la que fue fundada Colombia, de unir toda Latinoamérica en un solo país debía ser destruida de la faz de la tierra, así ellos se convertirían en la potencia mundial indiscutida de hoje em dia. Se o projeto do libertador Bolívar tivesse sido realizado, hoje a Colômbia seria o centro do mundo, mas dividiram ainda mais o nosso país, tiraram-nos o Equador com lacaios imundos, com Flores à frente, tiraram-nos a Venezuela com Páez e o Panamá, países que nasceram da traição e da cuspida no legado de Bolívar, na verdade estes três países hoje nem sequer têm independência económica na gestão do dólar, como moeda de circulação nacional.

Se Petro é um patriota, pelo menos como afirma, deve derrotar esta política separatista do imperialismo, o diálogo com as insurgências deve ser permanente, porque deve haver uma centralidade nas armas, na recuperação da nação, faz parte do trabalho de ter um único exército patriota, uma única força armada, aqueles que estão aptos a portar armas, deve estar com o Estado. Petro não pode deixar-se influenciar pelo coro de lacaios do imperialismo, que procuram mais mães colombianas chorando e enterrando os seus filhos numa guerra fratricida. O facto de a actual guerrilha ter sido rearmada pelo imperialismo não implica que controlem toda a sua liderança. Acredito que Iván Márquez, assim como Iván Mordisco, sejam verdadeiros líderes da Colômbia, que tiveram de regressar às montanhas para evitar. sendo assassinado, que As armas são gringos, é outra coisa, mas elas estão aí para sobreviver aos assassinos, Petro ainda precisa se cuidar, o exército colombiano deve proteger muito bem o chefe de estado, o inimigo está à espreita para gerar caos e confronto de qualquer lado, como aconteceu com a morte de Gaitán.

No âmbito dos diálogos de paz, todas as falhas devem ser resolvidas, teria sido bom que o Presidente Petro solicitasse na mesa de diálogo a rendição das duas pessoas que atiraram no líder indígena, conforme solicitado pelo sistema de justiça indígena, sem gerando esse verdadeiro banho de sangue em que Cauca e Valle del Cauca estão se transformando. Presidente Petro, o senhor diz que a Colômbia é uma potência de vida e de turismo, seguir a política de confronto armado de Uribestia não alcançará nenhum dos seus dois objetivos. Com o amor que tenho por você e por meu país, peço que reconsidere, Presidente.
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SIONISMO: ARMA DO IMPERIALISMO * Harpal Brar

SIONISMO: ARMA DO IMPERIALISMO
Nota:

Recebemos e divulgamos este panfleto escrito pelo ativista indiano-britânico Harpal Brar, do CP-MLGB, que foi proibido na Grã-Bretanha. É urgente lê-lo e difundir a voz. Agradecemos aos companheiros da CPML-GB por disponibilizá-lo.
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O sionismo não é um projeto judaico; é uma construção imperialista – um instrumento para perpetuar a dominação imperialista no Médio Oriente. O seu principal objectivo é garantir a continuação do controlo imperialista das reservas de petróleo e gás da região.

O Estado sionista de Israel é uma adaga apontada ao coração do movimento democrático-revolucionário do povo árabe. Ao mesmo tempo, subjugou mentalmente uma grande proporção dos judeus do mundo – pessoas que antigamente se encontravam nas primeiras fileiras de todos os movimentos democráticos e socialistas.

Devido à supressão da verdade histórica sobre o sionismo, as massas em geral, incluindo as massas judaicas, desconhecem a verdadeira natureza desta ideologia perniciosa, que é racista, anti-semita e reaccionária na sua essência.

Como fruto malformado das intrigas imperialistas e da ideologia sionista enlouquecida, o Estado israelita construído artificialmente está fadado a revelar-se um aborto histórico. Sendo uma empresa colonial que surgiu numa altura em que o colonialismo já tinha ultrapassado o seu prazo de validade, Israel está fadado ao colapso devido à resistência das massas palestinianas e à fadiga trazida à população colonizadora judaica pela guerra sem fim.

Este panfleto é a nossa pequena contribuição para expor e derrotar esta ferramenta viciosa do imperialismo.

Por Harpal Brar

sexta-feira, 17 de maio de 2024

O MARXISMO DE NELSON WERNECK SODRÉ * João Quartim de Moraes e Francisco Quartim de Moraes

O MARXISMO DE NELSON WERNECK SODRÉ

Escritor, militar, crítico literário, jornalista, professor e historiador, foi um dos principais intelectuais marxistas brasileiros – tendo abordado, em sua vasta obra, desde temas da cultura e história do Brasil a reflexões políticas, econômicas e filosóficas

Por João Quartim de Moraes e Francisco Quartim de Moraes *

WERNECK SODRÉ, Nelson (brasileiro; Rio de Janeiro, 1911 – Itu/SP, 1999)
1 – Vida e práxis política

Filho de Heitor de Abreu Sodré, advogado oriundo de uma família de fazendeiros de café empobrecidos, e de Amélia Werneck Sodré, de mesma origem social, Nelson Werneck Sodré revelou desde cedo gosto pela leitura. Foi em casa, antes de começar a frequentar a escola pública, na Muda da Tijuca (Rio de Janeiro), que se sentiu motivado pelo “desejo profundo de aprender a ler”.

Preocupado com o futuro profissional do filho, o pai aprovou seu ingresso no Colégio Militar, em 1924. Também precoce na escrita, em 1929 ele publicou seu primeiro conto – na revista O Cruzeiro.

Em 1930, Sodré entrou na Escola Militar do Realengo, onde se graduou no final de 1933, iniciando como aspirante sua carreira de oficial do Exército. Mais tarde, ele evocaria em um de seus escritos autobiográficos o “tempestuoso período” atravessado pelo Brasil durante os anos finais de sua infância e os de sua juventude, marcados pelo movimento tenentista, a agonia da República oligárquica, o modernismo na literatura e nas artes e a Revolução de 1930.

As tempestades políticas continuaram durante os primeiros anos de sua atividade como oficial: o Levante Comunista de 1935; e a ditadura do Estado Novo, instaurada por Getúlio Vargas em 1937. Porém, isto não o impediu de assumir seus deveres militares com responsabilidade, o que inspirou confiança a colegas e superiores hierárquicos.

Em 1934, o jornal Correio Paulistano, com o qual colaborava desde 1931, convidou-o para exercer a crítica literária – tarefa que realizaria pelo próximo quarto de século. Em 1937, após ter servido em unidades militares de São Paulo, foi transferido para o Rio de Janeiro, onde entrou em contato com alguns dos mais importantes escritores brasileiros de então – desde expoentes do campo da esquerda, como era o caso de Graciliano Ramos e Samuel Weiner, como da direita, como Oliveira Viana e Azevedo Amaral.

Em 1941, passou a escrever para o jornal O Estado de São Paulo, bem como para Cultura Política – revista teórica ligada ao regime ditatorial. Mais tarde, Sodré alegaria que, embora fosse politicamente “alienado” à época, não escrevia artigos que pudessem soar como bajulação ao Estado Novo; naquele contexto, Vargas buscava reagrupar em torno de seu projeto nacional intelectuais de várias tendências ideológicas – de Gilberto Freyre e Azevedo Amaral a Álvaro Vieira Pinto e Graciliano Ramos, empenhados em estudar de modo inovador a sociedade e cultura brasileiras.

Transferido em 1942 para um grupo de artilharia na Bahia, Sodré não tardou em se aproximar do núcleo de intelectuais comunistas que lá atuavam. Embora ele levasse a sério a carreira militar, evitava que ela interferisse em sua consciência e ação política. Essa aproximação prosseguiu rumo às posições e lutas que o consagrariam como uma importante expressão do marxismo brasileiro. Por conta das perseguições do Estado Novo aos membros do Partido Comunista do Brasil (PCB), sua adesão partidária formal permaneceu sigilosa.

Em 1943, a tese de que o Brasil deveria participar diretamente das operações da II Guerra Mundial na Europa, defendida por Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, ganhou força na cúpula do Estado Novo, vencendo a relutância dos generais Gaspar Dutra e Góes Monteiro – dois dos principais chefes militares. Em 2 de julho de 1944, a Força Expedicionária Brasileira (FEB) embarcou para a Itália.

Convencido de que o regime ditatorial do Estado Novo não era mais sustentável, Getúlio Vargas promulgou em 28 de fevereiro de 1945 uma lei constitucional convocando eleições gerais para 2 de dezembro, restabelecendo algumas atribuições ao Congresso e fixando parâmetros para a reforma da Constituição. Em 18 de abril de 1945, uma anistia geral dos presos políticos abriu caminho para o retorno dos comunistas à cena política nacional. Em 15 de maio, os sindicalistas getulistas formaram o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Sodré acompanhou de perto esta virada democrática, pois se fixara no Rio de Janeiro, desde 1944, para seguir o curso da Escola de Estado-Maior (que concluiu em 1946, recebendo a patente de major e o cargo de professor de História Militar na mesma Escola). As massas sindicalizadas, em crescente mobilização, defendiam a convocação de uma Assembleia Constituinte “com Getúlio”. Os comunistas também: em sucessivos comícios, Prestes, enfim livre após nove anos de prisão, anunciou apoio ao governo. O prestígio popular que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) conferia a Getúlio assustava a burguesia liberal, a direita conservadora e a Embaixada estadunidense. Coube aos generais Dutra e Góes Monteiro (que oito anos antes apoiaram a instauração da ditadura) a tarefa de montar o golpe que deporia Getúlio em outubro de 1945. Um governo provisório conferiu poderes constituintes ao Congresso a ser eleito em dezembro. Sodré, crítico do Estado Novo, mas favorável à “Constituinte com Getúlio”, via no golpe liberal o estabelecimento de um dispositivo militar que, ainda sob o formalismo democrático, resguardava as forças conservadoras e lhes permitia o controle da situação.

Nas eleições de dezembro de 1945, as eleições para a presidência da república foram disputadas pelo general Gaspar Dutra, candidato do Partido Social-Democrático (PSD), composto sobretudo de chefes políticos colaboradores do governo de Getúlio, e pelo brigadeiro Eduardo Gomes lançado pela União Democrática Nacional (UDN), que juntava a direita liberal antigetulista e pró-estadunidense. O PTB apoiou o candidato do PSD, que foi eleito. Porém, Dutra, após angariar os votos getulistas, aliou-se com Gomes e a UDN, formando o que Sodré chamou de “consulado militar”, que tratou o trabalhismo como inimigo, tratou a mobilização popular como assunto de polícia e, evocando os ódios da “Guerra Fria”, pressionou o Judiciário e o Congresso até conseguir que cassassem o registro do PCB, bem como os mandatos de Prestes no Senado e de todos os comunistas eleitos em 1946.

Foi nesse ambiente, especialmente difícil para um militar da ativa, que Sodré consolidou seu vínculo com o PCB (novamente na ilegalidade). Decerto, não podia assumir em público seu compromisso partidário mas, em 1950, aceitou integrar a chapa dirigida pelo general Newton Estillac Leal, tenentista veterano e nacionalista de esquerda, vencedor da disputa pela presidência do Clube Militar. Sodré, que já era considerado o principal teórico da esquerda militar, assumiu a direção do Departamento Cultural do Clube, cuja revista tornou-se a tribuna dos oficiais que apoiavam uma política externa independente e reformas sociais – oficiais que além de nacionalistas eram anti-imperialistas.

O procedimento padrão para cercear as atividades de oficiais politicamente incômodos era deslocá-los para guarnições distantes da capital; em 1951, Sodré foi enviado para Cruz Alta, na serra gaúcha. No isolamento, Sodré aproveitou a estadia para aprofundar suas leituras e escrever.

Em 1955, voltou ao Rio de Janeiro em um ambiente político conturbado. A direita antitrabalhista nunca aceitara a inquestionável vitória de Getúlio na eleição presidencial de outubro de 1950; acuara-o até o suicídio (em 1954), mas sem lograr impedir a vitória de Juscelino Kubitschek e de João Goulart nas eleições presidenciais de 1955. Nesse embate, Carlos Lacerda e o coronel Mamede eram os “anticomunistas de choque”, isto é, os líderes conservadores que pregavam abertamente um golpe para impedir a posse dos eleitos; porém, foram contidos pelo general Teixeira Lott, ministro da Guerra (e defensor da legalidade). No dia 11 de novembro, em uma operação fulminante, Lott desarticulou o golpe gestado pela UDN em andamento.

Abriu-se então para Sodré um período de intensa atividade. As perseguições que vinha sofrendo interromperam-se com o novo governo, no qual Lott foi reconduzido ao cargo de ministro da Guerra. Já reconhecido como um dos intelectuais críticos mais importantes do país e um grande conhecedor dos problemas nacionais, o comunista foi convidado a integrar o recém-criado Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), no qual teve destacada atuação.

Em 1960, Jânio Quadros, candidato da direita à presidência, derrotou Lott, candidato dos nacionalistas e da esquerda – mas renunciou intempestivamente ao cargo no ano seguinte. Então, uma junta militar golpista tentou impedir a posse de seu sucessor legítimo, o vice João Goulart. Um acordo evitou o confronto: Goulart assumiu a presidência, mas teve suas atribuições limitadas por um regime parlamentar improvisado. Entrementes, por ter apoiado a resistência ao golpe, Sodré havia novamente atiçado contra si a cúpula reacionária do Exército; como Lott e outros militares legalistas, ele chegou a ser preso.

Em 1961, após constatar que as perseguições não iriam terminar, Sodré solicitou transferência para a reserva do Exército no posto de general de brigada. Desde então, concentrou-se no ofício de escritor, de professor do ISEB e de intelectual comunista militante.

Pouco mais tarde, os golpistas de 1964, acertando velhas contas, prenderam-no dois meses no Forte de Copacabana; seus direitos foram cassados, seus livros proibidos e retirados das livrarias. A despeito disso, Sodré seguiu escrevendo até o fim de sua longa vida. Nos anos seguintes ao golpe, até o final da década, ele publicou nove importantes livros – sobre temas como a filosofia marxista e a formação da economia brasileira, além de uma história da imprensa.

Nos anos 1970, teve sete livros publicados – nos quais abordou desde a história da cultura nacional, à história política e intelectual. Na década seguinte, seguiu prolífico, tendo escrito dez livros, entre os quais História e materialismo histórico no Brasil (1985). Finalmente, em sua última década de vida, ele lançou cinco obras, como A farsa do neoliberalismo (1995).

Embora tenha se consagrado prioritariamente à elaboração de sua obra vasta – que lhe conferiria uma posição proeminente no marxismo brasileiro –, o autor manteve contato constante com seus companheiros nacionalistas e comunistas do Exército, cassados pelos golpistas de 1964. Ao lado de um de seus mais fiéis amigos, o coronel Kardec Leme, veterano da FEB e da militância comunista, ele participou, desde a fundação, em 1983, da Associação Democrática e Nacionalista de Militares (ADNAM) – uma tentativa corajosa de reintroduzir ideias progressistas na oficialidade. Seu apartamento, na rua Dona Mariana, em Botafogo (Rio de Janeiro), era uma referência para intelectuais e dirigentes políticos da esquerda nacional-democrática e trabalhista.

Discreto por temperamento e estilo de vida, Sodré manteve-se lúcido até seus últimos dias de vida – em Itu, cidade paulista na qual mantinha vínculos de família. Continuava trabalhando quando foi internado na Santa Casa de Itu, em 11 de janeiro de 1999, para uma operação à qual não resistiu, morrendo dois dias depois.
2 – Contribuições ao marxismo

Sodré nos legou um tesouro de ideias que se incorporaram ao patrimônio teórico da cultura marxista do Brasil. Sua vasta obra se impõe pela solidez de sua fundamentação histórica, pela análise concreta de problemas e situações, pela atenção aos mais diversos e contraditórios aspectos e dimensões da realidade brasileira, bem como por sua objetividade, expressa no empenho de submeter conceitos e hipóteses de explicação ao crivo dos fatos. Seu pensamento, forjado por um lúcido e constante interesse pelo destino da nação, era profundamente patriótico, mas por isso mesmo mantinha um olhar crítico sobre as mazelas e misérias que entorpeciam a sociedade brasileira.

Junto com o conhecimento da história social da humanidade, a teoria marxista proporcionou-lhe o método crítico de análise – tendo se apoiado na dialética materialista para compreender as particularidades e as contradições da sociedade e cultura brasileiras.

Consagrou muitos livros à formação e evolução da economia brasileira desde as plantações coloniais até a ascensão do neoliberalismo, no final do século XX. As categorias teóricas de sua explicação provêm do materialismo histórico: sempre amparado em farta documentação, ele descreve os modos de produção dominantes em cada etapa da história nacional, analisando as condições sociais em que eles se implantaram e desenvolveram, assim como o complexo de interesses de classe a que eles correspondiam.

É conhecido o debate que opõe Nelson Werneck Sodré, cujo tema central é o estudo da dinâmica interna da economia brasileira, a Caio Prado Júnior, para quem as forças e relações de produção aqui instauradas são sobretudo efeitos do “sistema colonial”. Caio Prado dá mais importância à inserção da economia colonial no mercado internacional, o que o leva a sustentar que o Brasil, “participa desde seus primórdios” do sistema mercantil internacional; com isso, propõe mesclar em suas análises a circulação de mercadorias com a produção social.

Entretanto, no espírito da dialética materialista, há que observar outros pontos de vista, como o de Sodré, que mostrou como a circulação de mercadorias reagiu sobre suas bases produtivas. Para ultrapassar a baixa produtividade agrária e a estreiteza do feudalismo, os portugueses participaram a fundo da expansão do comércio europeu durante os séculos finais da Idade Média e, em seguida, tomaram a iniciativa das grandes navegações oceânicas que deram origem ao sistema colonial da Era Moderna. Os navegantes que foram protagonistas dessas audaciosas iniciativas e os financistas que nelas investiram seu dinheiro receberam decisivo apoio da monarquia. Precocemente centralizado por causa das guerras contra os mouros, apoiando-se de um lado na nobreza feudal, de outro nos interesses mercantis, o Estado português tornou-se o grande empreiteiro do negócio colonial.

Foi assim que, respondendo ao aumento da demanda de açúcar, especiaria então rara na Europa, Portugal estimulou a entrada na esfera produtiva de capitais mercantis até então aplicados no comércio marítimo e no sequestro de africanos para escravização. Nas ilhas atlânticas ocupadas pelos portugueses ao longo do século XV, instalaram-se técnicos e capatazes para controlar as plantações de cana-de-açúcar e enquadrar o trabalho dos escravos. Foi esse o protótipo da grande plantação introduzida do Brasil colonial. Sua base econômica era escravista, mas a apropriação da terra, dividida em capitanias hereditárias – cujos donatários distribuíam extensões de terra (“sesmarias”) aos “homens de qualidade”, que dispusessem de recursos para explorá-las –, obedecia ao regime feudal dominante em Portugal e transposto à terra brasilis.

Porém, essa superestrutura jurídica não correspondia às relações escravistas da colônia. Como frisou Werneck Sodré, prevaleceram as condições objetivas do sistema de plantações, mantendo-se, entretanto, a divisão da terra em sesmarias; o modo de produção escravista prosperou onde se desenvolveram as atividades produtivas mais rentáveis: cana-de-açúcar, algodão, mineração, charque e café. Já em outras regiões do vasto território brasileiro – as zonas de pecuária do Nordeste e do Rio Grande do Sul, as de coleta florestal, as “fronteiras agrícolas” –, segundo Sodré, as relações sociais de produção assumiram traços “feudais”. Isto porque a exploração do trabalho se baseava em laços de dependência pessoal, na posse da terra e do gado, quando não na coerção direta. Nas regiões em que as atividades escravistas entraram em decadência após um auge de prosperidade, a abolição da escravidão sem uma concomitante reforma agrária deixou a massa dos alforriados em precárias condições de existência. Perante o avanço do movimento abolicionista, os fazendeiros de café instituíram o “colonato”, chamando camponeses pobres imigrados da Europa para trabalhar nos cafezais, mediante remuneração parcial em dinheiro e partilha do que produzissem.

Sodré encontrou uma imagem forte, extraída da cultura popular, para expressar os efeitos predatórios dessa sucessão de ciclos econômicos: “o nome que mais aparece nos mapas brasileiros das regiões ocupadas mais cedo é o de tapera, isto é, ruína”; um nome que se refere a um dos fenômenos “mais característicos da história” do Brasil: a “marcha territorial da riqueza”.

Na concepção de Sodré, a independência nacional, tendo herdado “escravismo e feudalismo”, não teria “traço algum de revolução burguesa” – a qual se esboçou no século XIX, avançando lentamente, e se acelerou com o movimento de 1930, mas mantendo o latifúndio e conciliando com a dominação imperialista.

Em sua densa interpretação marxista do Brasil, Sodré fundamenta um programa nacional-democrático – importante contribuição teórica para uma futura revolução brasileira. Seus objetivos centrais, centrados em temas como o desenvolvimento autônomo da economia, reforma agrária e ampla mobilização popular permanecem no centro de qualquer visão transformadora da sociedade brasileira. Seu programa aponta para a perspectiva da aliança das forças socialistas com a chamada “burguesia nacional”: aliança considerada tão somente como uma possibilidade objetiva, condicionada pela correlação de forças entre o campo nacional popular e o bloco reacionário (formado pelos latifundiários e pelo que ele entende como uma outra parcela da burguesia – pró-imperialista).

Para Sodré, a burguesia brasileira, embora economicamente bloqueada pela dominação imperialista, temia ser suplantada pela dinâmica das lutas sociais; portanto, hesitava sempre entre se aliar com a classe operária e demais forças populares – para levar adiante um programa nacional-democrático (expresso, na conjuntura de 1963-1964, pelas “reformas de base” do presidente João Goulart) –, ou, ao contrário, associar-se com os grandes interesses agroexportadores, aceitando a presença dominante dos trustes imperialistas. Sabemos quão destrutivas foram as consequências de ter prevalecido o segundo termo dessa alternativa histórica.
3 – Comentário sobre a obra

Sodré escreveu 58 livros e cerca de 3000 artigos em mais de 60 anos de militância intelectual. A gama é ampla e múltiplas são as dimensões dos temas que compõem sua obra. Predominam os estudos históricos abrangentes, consagrados às relações econômicas, à política e cultura brasileiras. Publicou também relatos autobiográficos, bem como trabalhos de introdução ao materialismo histórico e sobre assuntos de atualidade. O interesse constante suscitado por seus escritos estimulou muitas reedições de seus livros. Mencionamos a seguir a primeira edição dos livros de Sodré publicados em vida – resenhando alguns dos mais importantes. Quanto aos artigos, listamos tão somente os principais jornais e revistas com que ele colaborou.

História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos (São Paulo: Edições Cultura Brasileira, 1938) foi seu primeiro livro, no qual ele desenvolveu de modo pioneiro uma inovadora interpretação histórico-materialista da produção literária brasileira, distinguindo três etapas na evolução de nossa literatura: a colonial, a da busca de autenticidade nacional, e a do modernismo – em que o componente nacional se afirmou, emancipando-se dos modelos europeus. Metódica e objetiva, a obra reconstitui os contextos sociais e culturais da evolução da produção literária brasileira, mantendo um equilíbrio entre as características da produção de cada autor e a do modo como interagiu com suas circunstâncias. Sodré lia com extrema atenção e agudeza crítica os livros que analisava e os comentava – valorizando a obra mais do que a “vida literária” dos autores. Bom exemplo, entre outros, é a análise comparativa entre Mário e Oswald de Andrade: aquele fazendo original e bem elaborada literatura; este dando mais importância à agitação cultural.

Panorama do Segundo Império (São Paulo: Editora Nacional, 1939) é um estudo abrangente da história do Brasil sob o reinado de Pedro II, obra articulada em seis grandes panoramas: da escravidão, político, parlamentar, econômico, da centralização, do ocaso. Os capítulos consagrados a cada “panorama” têm fisionomia própria e foco distinto, ainda que temas mais recorrentes sejam tratados em mais de um capítulo. O livro analisa os três ciclos principais da economia escravista: açúcar, mineração e café, mas a campanha abolicionista é apresentada nos capítulos relativos à atividade parlamentar e ao ocaso do Império. O café é também estudado do ponto de vista de seu itinerário geoeconômico e de sua importância nas relações entre os fatores do poder nacional. A análise da centralização imperial (administrativa, fiscal, jurídica) leva a constatações predominantemente críticas, que explicam o ocaso do regime. Sodré descreve com clareza as instituições do poder de Estado, as situações históricas que as puseram à prova (a guerra contra o Paraguai, entre outras), bem como as dificuldades e disfunções que as entravaram. Ele também traça retratos concisos e objetivos de personagens importantes, tais como Pedro II, Caxias, Mauá e Joaquim Nabuco.

Formação da sociedade brasileira (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944) é uma síntese panorâmica e didática dos estudos sobre a história do Brasil, desde a colonização até o Estado Novo. Seu grande mérito é que, ao mesmo tempo em que populariza o debate acadêmico, se vale de original explicação histórico-materialista.

Em O Tratado de Methuen (Rio de Janeiro: ISEB, 1957) – como nas demais obras escritas durante o período em que atuou no ISEB –, Sodré não perde de vista, ao estudar um fato importante do passado, sua relevância para a compreensão dos problemas presentes. Ele se contrapõe às interpretações predominantes desse tratado, que leva o nome do insidioso negociador britânico J. Methuen; é desse documento, assinado em 1703, que data a subordinação econômica portuguesa à Grã-Bretanha: Portugal abria seu mercado interno ao trigo em troca de liberdade de exportação de seu vinho. Para Sodré, os efeitos de acordos comerciais são insuficientes para explicar a atrofia do desenvolvimento industrial português, assim como, por si só, medidas protecionistas não garantem a industrialização. Pensando na situação do Brasil, ele insiste em que, sem transformações sociais coerentes, não seria possível abrir caminho para o desenvolvimento nacional.

Formação histórica do Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1962) expõe o essencial de cinco anos de cursos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), o consagrado centro de debates e formulações sobre o desenvolvimento nacional – fechado pela ditadura militar.

Já sua História militar do Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965) apresenta um panorama abrangente da organização das forças armadas, desde o início da colonização até o golpe de 1964. Traz documentos importantes que permitem avaliar com objetividade as intervenções políticas dos militares em momentos decisivos de nossa história, mostrando tanto o caráter progressista de sua participação na abolição e na derrubada da monarquia imperial, quanto as perseguições que sofreram os oficiais nacionalistas e legalistas ao longo dos anos 1950, anunciando as muito piores que viriam com o golpe de 1964.

Em Memórias de um escritor (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970), a escrita autobiográfica permite ao historiador maior liberdade literária; com ela Sodré descreve suas lembranças de leituras feitas quando criança, como as da revista infantil Tico-Tico, seguindo até os debates em sua juventude sobre literatura e filosofia. O foco do livro é sua própria formação intelectual. Outros aspectos de sua vida são mais bem retratados em outras obras, também autobiográficas, como Memórias de um soldado (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967).

No livro A intentona comunista de 1935 (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985), cujo título remete a uma expressão pejorativa sobre o movimento de 1935, Sodré, assume uma postura crítica ao PCB, à organização da insurreição militar e à ausência da participação popular e operária – apesar de deixar explicito o seu respeito pelos participantes do levante.

Capitalismo e revolução burguesa no Brasil (Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990) retoma e sintetiza dois grandes temas: o desenvolvimento do modo de produção capitalista e o decisivo papel histórico de Vargas; obra imprescindível para a compreensão crítica da evolução econômica e política de nosso país, tanto pela clareza e rigor conceitual quanto pela análise concreta das questões centrais da transformação burguesa da sociedade brasileira.

A lista dos demais livros publicados pelo autor tem a seguinte ordem cronológica: Oeste: ensaio sobre a grande propriedade pastoril (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1941); Orientações do pensamento brasileiro. (Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1942); Síntese do desenvolvimento literário no Brasil (S. Paulo: Livraria Martins Editora, 1943); O que se deve ler para conhecer o Brasil (Rio de Janeiro: Leitura, 1945); História do vice-reinado do Rio da Prata (Rio de Janeiro: Escola de Estado Maior do Exército, 1947); A campanha rio-grandense (Rio de Janeiro: Escola de Estado Maior do Exército, 1950); As classes sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1957); Raízes históricas do nacionalismo brasileiro (Rio de Janeiro: ISEB, 1958); Introdução à revolução brasileira (Rio de Janeiro: Livr. José Olímpio Editora,1958); Narrativas militares (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1959). A ideologia do colonialismo (Rio de Janeiro: ISEB, 1961); Quem é o povo no Brasil? (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962); Quem matou Kennedy? (Rio de Janeiro: Gernasa, 1963); História da burguesia brasileira (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964); Ofício de escritor: dialética da literatura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965); O naturalismo no Brasil (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1965); História da imprensa no Brasil (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1966); Memórias de um soldado (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1967); Fundamentos da Estética marxista (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1968); Fundamentos da Economia marxista (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1968); Fundamentos do materialismo histórico (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1968); Fundamentos do Materialismo Dialético (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1968); Síntese de História da Cultura brasileira, (Rio de Janeiro: Civ. Bras., 1970); Brasil: radiografia de um modelo (Petrópolis: Vozes, 1974); Introdução à Geografia (Petrópolis: Vozes, 1976); A verdade sobre o ISEB (Rio de Janeiro: Avenir, 1978); Oscar Niemeyer (Rio de Janeiro: Graal, 1978); A Coluna Prestes (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978); Vida e morte da ditadura: vinte anos de autoritarismo no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1984); Contribuição à história do PCB (São Paulo: Global, 1984); História e materialismo histórico no Brasil (São Paulo: Global, 1985); O Tenentismo (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985); História da História Nova (Petrópolis: Vozes, 1986); O governo militar secreto (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987); Literatura e História no Brasil contemporâneo (Rio de Janeiro: Graphia, 1987); A República: uma revisão histórica (Porto Alegre: Editora UFRGS, 1989); A marcha para o nazismo (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989); A luta pela cultura (Rio de Janeiro: Bertrand Br., 1990); O fascismo cotidiano (Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990); A ofensiva reacionária (Rio de Janeiro: Bertrand Br., 1992); A fúria de Calibã: memórias do golpe de 64 (Rio de Janeiro: Bertrand Br.,1994); A farsa do neoliberalismo (Rio de Janeiro: Graphia, 1995).

Cabe também assinalar a participação de Sodré à frente de um coletivo de jovens historiadores reunidos no projeto da História Nova do Brasil. Formulado no ISEB (do qual ele era o diretor) e apoiado pelo MEC, o projeto previa dez livros didáticos, do descobrimento do Brasil ao significado do florianismo. Cinco chegaram a ser publicados, mas corria o ano de 1964 e a ditadura militar não tardou a impedir o prosseguimento do projeto e a perseguir seus participantes. No ano seguinte, entretanto, passada a primeira vaga repressiva, a editora Brasiliense retomou o projeto, reformulando-o em 6 volumes, dos quais somente 2 (o primeiro e o quarto) foram editados.

Em 1987, Maria Ana Quaglino e Mattos Dias realizaram uma entrevista com Nelson Werneck Sodré, promovida pela parceria entre o CPDOC/Fundação Getúlio Vargas e a SERCOM/Petrobrás – no âmbito do projeto “Memórias da Petrobrás” –, cuja transcrição pode ser obtida no portal da FGV (www18.fgv.br).

Em 1998, foi publicado Tudo é Política: 50 anos do pensamento de Nelson Werneck Sodré (Rio de Janeiro: Mauad, 1998), coletânea organizada por Ivan Alves Filho de textos esparsos, principalmente artigos de jornais, semanários e outros periódicos (alguns inéditos).

Dentre as principais revistas e jornais com que contribuiu ao longo da vida, citamos: Correio Paulistano (1931); Cultura Política (1941); O Estado de São Paulo (1941); Revista do Clube Militar (1948); Revista Civilização Brasileira (1968); Temas de Ciências Humanas (1977); Encontros com a Civilização Brasileira (1978).

Há muitos estudos consagrados às ideias e à obra de Sodré. Um dos mais destacados é o de Marcos Silva, que organizou Nelson Werneck Sodré na historiografia brasileira (Bauru: Edusc 2001), compêndio de 13 estudos sobre diferentes aspectos de sua obra; e, ainda, o grande Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré (Rio de Janeiro: UFRJ, 2008) – composto por 83 verbetes, os quais apresentam ou um livro ou um conjunto de artigos publicados pelo marxista em revistas e jornais, recobrindo praticamente toda sua produção intelectual. Menção também ao trabalho de Paulo Cunha Um olhar à esquerda: a utopia tenentista na construção do pensamento marxista de Nelson Werneck Sodré (Rio de Janeiro: Revan, 2002), estudioso que, além deste livro, organizou, em parceria com Fátima Cabral, Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a pena (São Paulo: UNESP, 2006), reunindo contribuições de 21 pesquisadores (e incluindo lista abrangente de estudos consagrados ao pensamento do marxista).

Na rede há obras de Werneck Sodré digitalizadas, as quais podem ser obtidas em portais como: Marxists (https://www.marxists.org); e Marxismo 21 (https://marxismo21.org).
4 – Bibliografia de referência

CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um olhar à esquerda: a utopia tenentista na construção do pensamento marxista de Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.

CUNHA, Paulo Ribeiro da; CABRAL, Fátima (orgs.). Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a pena. São Paulo: Editora da UNESP, 2006.

PENNA, Lincoln de Abreu. A República dos manifestos militares: Nelson Werneck Sodré, um intérprete republicano. Rio de Janeiro: E-Papers, 2011.

SILVA, Marcos (org.). Nelson Werneck Sodré na historiografia brasileira. Bauru: Editora da USC, 2001.

______(org.). Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008.

Notas

* João Quartim de Moraes é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp; formado em Filosofia e em Direito pela Universidade de São Paulo, com doutorado em Ciência Política pela Fondation Nationale de Science Politique (França). Autor de, entre outras obras: A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular, 2005), e da coleção, de que é também organizador, História do marxismo no Brasil (Unicamp, 1998).

* Francisco Quartim de Moraes é historiador; formado em História pela Universidade de São Paulo, com mestrado e doutorado em História Econômica na mesma instituição. É pesquisador do Núcleo Práxis-USP e membro do Grupo de Pesquisa Dimensões do Regime Vargas e seus desdobramentos (CNPq/UERJ). Autor de, entre outras obras: 1932: a história invertida (Editora Anita Garibaldi, 2024).

* Com edição de texto de Pedro Rocha Curado e Yuri Martins-Fontes, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América. Permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org).

quinta-feira, 16 de maio de 2024

ESTRATÉGIA E TÁTICA * MARTA HARNECKER

 ESTRATÉGIA E TÁTICA

MARTA HARNECKER

Estrategia E Tatica 8 Marta Harnecker

TEORIA LENINISTA DA ORGANIZAÇÃO * ERNEST MANDEL

TEORIA LENINISTA DA ORGANIZAÇÃO
ERNEST MANDEL

1. Marx não nos deixou uma teoria acabada da formação da consciência de classe do proletariado nem, do mesmo modo, uma teoria acabada do partido. Existem nas suas obras elementos fragmentários duma tal teoria mas esses elementos aparecem muitas vezes como contraditórios, pois evidenciam quer um quer outro dos aspectos da formação desta consciência de classe que prevalecem na análise marxista. Umas vezes surge o elemento que opta pela maturação subjectiva do proletariado a longo prazo — em função da própria condição proletária, quer dizer, em função da posição que o proletariado ocupa no processo de produção capitalista, e na sociedade burguesa em geral. Outras vezes, surge o elemento que destaque a imaturidade subjectiva imediata do mesmo proletariado — em função do peso da miséria, da alienação, do embrutecimento e, sobretudo, da sujeição à ideologia da classe dominante, tudo isto resultante, igualmente, da condição proletária.

Cabe a Lenine o mérito histórico de ter combinado estes elementos dispersos para formular ,uma teoria coerente da formação da consciência de classe proletária, teoria que constitui o alicerce da sua teoria de organização. Muitos dos mal-entendidos formulados a respeito desta teoria de organização e muitos dos processos de intenção imputados a Lenine ao longo de todo o século XX, provêm da recusa em compreender este ponto de partida teórico. É certo que, quando se fala de uma teoria leninista de organização, tende-se a fazer referência exclusivamente à brochura Que Fazer? e a reconverter mais de um quarto de século de actividade incansável no domínio da organização unicamente aos princípios enunciados nesta obra. Na medida em que não se veja em Lenine um Maquiavel hipócrita, que passa deliberadamente em silêncio uma parte das suas intenções sempre que “a conjuntura é desfavorável" na medida em que se lhe reconheça o mínimo de boa-fé e de coesão ideológica, sem as quais a discussão das suas ideias perde todo o sentido, esta tentativa simplificadora torna-se evidentemente infundada. Há na obra de Lenine uma constância de certos temas-chaves que se encontram expostos da maneira mais clara e mais convincente em Que Fazer? Mas à medida que a sua experiência se enriqueceu — antes de mais a experiência das lutas revolucionárias do proletariado russo de 1905, 1906 e 1917, e numa medida não negligenciável a experiência do movimento operário internacional durante e após a 1ª Guerra Mundial — Lenine integra na sua teoria de organização uma série de elementos suplementares, que encontraremos elaborados sobretudo nos escritos sobre a falência da Social-Democracia em 1914-1916, em O Estado e a Revolução e noutros escritos fundamentais de 1917, nos documentos dos primeiros congressos da Internacional Comunista e em «O Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo». É o conjunto destes elementos agrupados em torno das teses fundamentais de Que Fazer? e corrigindo-as em certos aspectos, que constitui a teoria leninista neste domínio, e não um momento desta, limitado no tempo.

Uma outra observação preliminar refere-se à tentativa de muitos críticos recusarem a teoria leninista de organização com base nas práticas burocráticas da URSS pós-leninista... Trata-se dum manifesto erro metodológico.

Certamente que a unidade da teoria e da prática de que se reclamam os marxistas — e que Lenine teria sido o primeiro a assumir por sua própria conta — permite confrontar, constantemente, as teorias com os seus resultados práticos. Mas ela exige que se demonstre que tais resultados derivam da teoria — e não de factores diferentes, ou até de teorias opostas. Condenar um manual de cirurgia porque um cirurgião falhou uma operação depois de ter feito os seus estudos com base nesse manual não é um procedimento científico muito sério. É preciso ainda demonstrar que foi a aplicação das teorias expostas no manual que causou a morte do paciente — e não um dos mil factores diferentes, independentes do teórico, que podem influir no desenrolar da intervenção cirúrgica, ou como consequência duma recusa deliberada em seguir o ensinamento recebido.

Por fim, é necessário distinguir o que, na teoria leninista de organização possui um valor universal, quer dizer, o que se aplica ao conjunto da época da crise geral do capitalismo, e deriva assim do conjunto das características fundamentais da sociedade burguesa, da produção capitalista e da natureza de classe do proletariado — e o que não é senão acidental, derivando de condições específicas do tempo e do espaço. Só para dar um exemplo: quantas vezes não se citou a passagem de Que Fazer? contra a eleição dos comités de partido, e a favor da sua designação pelo Centro, como prova das atitudes visceralmente «antidemocráticas» de Lenine? Esquecem-se de acrescentar que Lenine justifica estas proposições exclusivamente pelas condições difíceis de clandestinidade nas quais se encontrava o jovem Partido Social-Democrata Operário Russo; que a brochura Que Fazer? proclama ao mesmo tempo a necessidade da eleição e da maior divulgação de todos os comités e de todos os mandatários do Partido, desde que esteja assegurado o mínimo de liberdades democráticas e que as Teses do 2.0 Congresso da Internacional Comunista reafirmam o princípio da elegibilidade de todos os comités, abrindo de novo explicitamente, excepções, para as condições de clandestinidade extrema.

2. A teoria leninista da formação da consciência de classe proletária parte da distinção, que é essencial para o marxismo, entre a classe em si e a classe para si, que o jovem Marx tinha já estabelecido em «A Miséria da Filosofia». Desta distinção decorrem o conceito da existência objectiva das classes sociais, independentemente do seu nível de consciência, e o conceito de luta de classes objectiva, independentemente do nível de auto-compreensão dos interesses históricos das classes em presença. Estes dois conceitos de classes objectiva, e de luta de classes objectiva, são indispensáveis para a coesão interna do materialismo histórico e para se compreender a famosa definição do Manifesto Comunista:

«Toda a história da humanidade é a história da luta de classes».

É evidente que os escravos da Antiguidade e que os servos da Idade Média tinham ainda muito menos consciência dos seus interesses históricos de classe que os trabalhadores britânicos ou americanos de hoje. Negar o carácter de luta de classes aos grandes afrontamentos entre o Capital e o Trabalho, às grandes acções de classe do proletariado como, por exemplo, a greve geral italiana de 14 de Julho de 1948 ou as greves gerais belgas de 1950 e de 1960-1961, sob o pretexto de que a consciência dos proletários empenhados nestas batalhas não estava à altura das exigências da história, ou que estes se batiam por objectivos políticos que não saíam do domínio da democracia burguesa, é enterrar este conceito de classe objectiva e de luta de classes objectiva, e pôr um ponto de interrogação sobre todo o materialismo histórico. Não seria já a existência social que determinaria a consciência, mas a consciência - e só ela - que permitiria ajuizar da realidade de uma luta social que implica milhões de indivíduos. Mas, assim como a teoria leninista de organização nega os desvios deste subjectivismo extremo, também se opõe resolutamente ao objectivismo não menos mecânico que, sob o pretexto de que a luta de classes é para Marx o resultado inevitável da existência da sociedade capitalista e dos antagonismos que a dilaceram, vê na consciência o reflexo automático da existência social, e apaga assim a particularidade essencial da luta de classe proletária, aquela que a distingue de qualquer luta de classe do passado, a saber: a obrigação em que se encontra a classe operária de substituir uma sociedade e uma economia regídas por leis cegas e objectivas pela construção deliberada de uma sociedade e de uma economia novas e regídas pela direcção consciente dos produtores associados.

Uma vez que a construção do socialismo não pode ser o resultado automático nem da luta de classes no seio da sociedade burguesa, nem da simples libertação dos elementos da nova sociedade, presentes no seio da sociedade antiga, mas de uma organização consciente dos produtores, onível de consciência desses produtores determinará, numa medida apreciável, nas possibilidades de sucesso do empreendimento. Por outras palavras: da distinção estabelecida por Marx entre o conceito de classe em si e o de classe para si, Lenine deduziu a distinção do conceito de luta de classe elementar — resultado espontâneo, inevitável, das contradições de classe que o próprio modo de produção capitalista introduziu no seio da sociedade burguesa — e da luta de classe revolucionária, que é a única que permite transformar a primeira num assalto vitorioso contra a economia capitalista e o Estado burguês, e cujo êxito depende essencialmente do nível de consciência, de organização e de direcção do proletariado.

Certamente, a crítica de «voluntarismo» tantas vezes dirigida a Lenine é injustificada porque, na sua teoria, a luta de classe revolucionária não é nunca separada, mecanicamente, da luta de classe elementar. Ela não pode ser senão o produto desta, em certas condições históricas objectivas, claramente delimitadas. Contrariamente aos populistas, Lenine jamais acreditou que a simples «vontade revolucionária» ou «educação revolucionária» pudessem produzir uma revolução vitoriosa nas condições do czarismo. Sempre se preocupou em precisar que esta «vontade» e esta «educação» deviam partir da luta de classe elementar de uma classe social específica, o proletariado, ao qual o desenvolvimento do capitalismo na Rússia ia atribuir capacidades de luta e de organização de que não dispunha qualquer outra classe social da Rússia pré-capitalista. Nunca se esqueceu também de precisar que só em condições históricas bem determinadas — condições que geram periodicamente crises pré-revolucionárias, devido às contradições acumuladas no seio da sociedade russa sob o czarismo — o esforço de transformar a luta de classe elementar em luta de classe revolucionária podia dar os seus frutos.

Na ausênsia destas premissas — as únicas que permitem explicar de que modo a luta de classe elementar pode produzir uma «classe em si», pode produzir a consciência de classe proletária — a obra de uma vanguarda revolucionária não podia ter sucesso. Será interessante examinar os fundamentos socio-económicos destas premissas, no quadro do materialismo histórico; voltaremos mais adiante a isso. Mas retenhamos, de momento, apenas isto: o que distingue a teoria leninista de organização de outras teorias, mecanicistas ou voluntaristas, não é o facto de negar as ligações evidentes entre luta de classe elementar do proletariado e luta de classe revolucionária, nem de contestar que a primeira constitui a pré-condição da segunda (que uma maior amplitude da primeira não pode senão facilitar a eclosão da segunda). O que a distingue, é que ela contesta ligações automáticas e espontâneas entre a primeira e a segunda, prevê que a segunda não derivará da primeira se, às condições objectivas que presidem à sua eclosão, não se juntarem uma série de condições subjectivas que constituem o seu corolário fatal. É aí que encontramos todo o aprofundamento da teoria marxista da formação da consciência de classe proletária efectuada por Lenine, através da sua teoria de organização.

3. O nível preciso de consciência do proletariado não é nem o produto automático do seu lugar no processo de produção, nem também, o produto automático da sua experiência (e, portanto, da amplitude das suas lutas passadas e presentes). Esse nível resulta dum conjunto de factores muito mais complexos, e só a sua interacção permite explicar, em última análise, por que razão, numa época determinada, num país determinado, este nível é aquele que é.

A teoria leninista da formação da consciência de classe proletária começa por explicar que essa formação representa um processo desigual e descontínuo. Esse processo desigual e descontínuo de formação da consciência de classe proletária é, em primeiro lugar, o reflexo do processo histórico desigual e descontínuo da formação do próprio proletariado.

O conjunto dos operários assalariados, tal como aparecem num dado momento, num determinado país, não foi condenado; no mesmo momento, e nas mesmas circunstâncias a vender a sua força de trabalho. Uns são proletários industriais, filhos de proletários industriais, desde há várias gerações. Outros, acabaram de ser arrancados à sua aldeia natal e à agricultura ancestral. Uns, estão marcados pela vida e disciplinas colectivas da grande fábrica. Outros, sofrem a influência corporativa da pequena empresa e do trabalho semi-artesanal. Uns, estão impregnados da civilização dos grandes centros urbanos, onde a vida colectiva fora da fábrica prolonga muito naturalmente os impulsos solitários derivados do próprio trabalho industrial. Outros, sofrem o duplo efeito alienante da condição proletária e do habitat semi-rural isolado e atomizante. Uns, são educados, desde a infância, nas organizações operárias. Outros, estão submetidos à influência ideológica da classe burguesa transmitida pelas organizações clericais ou «neutras». A diversidade da consciência do proletariado, num determinado momento, é assim função duma estratificação que reflecte as origens históricas e as diferentes condições de vida e trabalho das diversas camadas proletárias.

Às raízes objectivas dessa estratificação do proletariado juntam-se raízes subjectivas não menos importantes. Cada operário não sofrerá da mesma maneira e no mesmo grau a influência ideológica da classe dominante. Diferenças de experiência, de inteligência, de temperamento, de carácter, farão reagir diferentemente diferentes membros duma mesma classe social, submetida às mesmas forças de exploração e de opressão. Mais cedo ou mais tarde a grande maioria da classe empenhar-se-á na luta — mas o facto de uns o fazerem mais depressa que outros, e compreenderem melhor o alcance geral da luta, tem evidentemente, uma importância decisiva sobre o comportamento quotidiano de uns e de outros — sobretudo fora dos períodos de grandes lutas. Se a estratificação social do proletariado tem causas objectivas, a estratificação subjectiva determina em ligação com ela, ao carácter descontínuo do desenvolvimento da consciência de classe. Este resulta por seu lado de uma característica fundamental da sociedade capitalista e da condição proletária, que é preciso lembrar a este propósito.

A classe operária sofre a exploração capitalista não em função duma qualquer prévia escolha ideológica, mas em função duma obrigação económica inevitável à qual não pode escapar, em condições «normais». Ela não pode deixar de trabalhar permanentemente, sem se ver condenada a morrer de fome (nos países neocapitalistas, de legislação social «generosa», as indemnizações de desemprego são impiedosamente suprimidas passado um certo tempo, se as autoridades burguesas chegarem à conclusão de que «o gajo não quer mas é trabalhar»). Quer dizer: no seu conjunto, a classe operária não pode estar permanentemente em luta e, fora dos períodos de luta revolucionárias que põem na ordem do dia o derrubamento do regime capitalista, toda a luta de classe neste regime desemboca inevitavelmente numa «reprivatização» parcial da classe, uma vez terminado o combate. Só os elementos mais conscientes, os mais enérgicos, os mais obstinados, resistirão a esta tendência em voltar à «luta pela existência», à «vida privada», que resulta da própria estrutura da sociedade e da economia capitalistas.

Esta mesma estrutura objectiva reflete-se, igualmente, através de uma estrutura mental, ideológica, por uma tendência à interiorização e à aceitação quotidiana das relações de produção capitalista. Até os operários mais «refractários» compram pão, pagam rendas e impostos e reproduzem assim, diariamente, as relações mercantis que constituem o fundamento do modo de produção capitalista, sem se apercebem disso. E travaram ao longo de decénios, lutas de classe ferozes, inclusivamente lutas políticas (como as dos Cartistas britânicos) inclusive insurreições, (como a dos operários de Lyon), sem por isso compreenderem que o capitalismo seria impossível sem a generalização das relações mercantis, sem a transformação da força de trabalho em mercadoria, e dos meios de produção em capital.

É indispensável um esforço de informação e formação teórica para desnudar todos os segredos e todos os mistérios da exploração capitalista. Este esforço, por definição, pode ser individual (ou no melhor dos casos, empreendido por grupos restritos de indivíduos); não pode ser o produto imediato da experiência. Ora, a grande massa só aprende pela experiência. Chegada ao seu estádio supremo, o da elaboração e da assimilação da teoria científica, a formação da consciência de classe do proletariado torna-se portanto, inevitavelmente, um processo individualizado e individualizante (isto é, aliás, um dos mecanismos essenciais pelos quais o operário alienado e desumanizado pode começar a conquistar uma individualidade independente. Mas isto é outra história). Torna-se, pela mesma razão, um processo de diferenciação no seio da classe operária.

4. O conceito leninista da consciência de classe proletária levado ao seu mais alto nível apoia-se, também, no papel relativamente autónomo da teoria marxista no processo histórico. Implica, por outras palavras, a impossibilidade de aceder a uma consciência global da condição proletária e das condições da sua superação — a uma consciência global do capitalismo e do socialismo — numa base puramente experimental, empírica, pragmática.

A experiência dos trabalhadores e de alguns grupos de trabalhadores é, forçosamente, uma experiência fragmentária e fragmentada da realidade social, limitada pelo horizonte preciso no qual se desenrola a sua existência: algumas empresas, alguns bairros, algumas cidades. As lutas que partem dessa experiência imediata são por esse facto marcadas pelo selo duma consciência parcelarizada que reflecte — mesmo que se tente negá-lo — o trabalho parcelarizado, que é característico do proletariado, com o seu corolário inevitável de reificação, de alienação e de «falsa consciência».

O carácter, inevitavelmente corporatista, destas lutas implica que a consciência de classe elementar, que resulta das lutas de classe elementares comporta numerosos aspectos que estão em contradição com uma luta de classe no sentido profundo e histórico do termo. Pois esta consciência parcelarizada reproduz divisões no seio do proletariado, que resultam das condições da própria produção capitalista e que a burguesia se esforça por manter a todo o custo. O proletariado não se torna uma classe para si — não se «constitui em classe», para retomar a fórmula de Marx — senão na medida em que esses factores de divisão sectorial, corporatista, localista, regionalista, nacionalista, recista, cedam o passo à consciência unificadora dos interesses comuns a todos os proletários, independentemente das particularidades de profissão, de ocupação, de qualificação, de habitat, de raça, de religião, ou de nacionalidade.

Mas se, numa certa etapa do seu desenvolvimento, o modo de produção capitalista favorece, incontestavelmente, a eclosão de lutas unificadores e gerais da classe operária, vê-se claramente que essas lutas não chegam para substituir a consciência fragmentária e parcelarizada por uma consciência global, totalizante, de todas as contradições capitalistas e de todas as condições de vitória do socialismo. Independentemente dos factores acima mencionados, que entravam a formação duma tal consciência globalizante, há o simples facto de que essas lutas generalizadas não são mais que momentos «pontuais» da existência operária, que só se produzem uma ou duas vezes durante a vida de cada geração operária (e em certas gerações nem sequer uma única vez confrontar a Alemanha entre 1933 e 1968!). Nestas condições, a origem puramente empírica duma tal consciência de massa, baseada naquilo que foi efectivamente vivido, torna os factores que determinam o carácter fragmentário da consciência operária infinitamente mais poderosos que os factores que operam em sentido contrário.

Uma das ideias-mestras de Que Fazer?, que conserva hoje todo o seu valor universal como no momento em que esta obra foi redigida, é que o proletariado não pode — aceder a uma consciência global da realidade capitalista — da sua própria existência — senão através duma prática social globalizante, isto é, através duma prática política. Mais exactamente: que só pode aceder a esta consciência de classe, levada à sua mais alta expressão, aquela minoria da classe operária disposta a (e capaz de prosseguir uma actividade política permanente mesmo nos períodos de recuo do movimento de massa, mesmo nas fases de «reprivatização» da maioria dos trabalhadores, mesmo nas fases de ascenso da influência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa no seio da classe operária. Eis o fundamento materialista da necessidade dum partido de vanguarda, proclamado por Lenine.

A maneira como Lenine privilegiou, deliberadamente, esta praxis política que traz constantemente ao de cima todos os aspectos da realidade capitalista, oposta à praxis trade-unionista («economicista») que se contenta em agitar os trabalhadores em torno da exploração e da opressão imediatas, sofridas na sua própria empresa, bairro, cidade, (e quando muito: região, país) está na base de inúmeros mal-entendidos e interpretações mal intencionadas. Os fundamentos teóricos desta concepção são contudo manifestos. O que Lenine contesta — e o que contestaram antes dele Marx e Engels, salvo talvez nalgumas frases das suas obras de juventude, e mesmo estas isoladas em geral do seu contexto — é que a acumulação gradual e descontínua da experiência imediata conduz «no fim de contas» a reproduzir uma análise teórica, que somente um esforço particular tinha podido produzir inicialmente (evidentemente num contexto histórico determinado, em última análise, pela existência prévia da sociedade burguesa e da luta de classe proletária). Cem greves por reivindicações imediatas, mesmo que travadas com o maior ardor do mundo, não levarão necessariamente a uma consciência de classe globalizante, socialista. Basta estudar a experiência das lutas de classe na Grã-Bretanha durante a segunda metade do século XIX, a experiência das lutas de classe nos Estados Unidos durante o período 1940-1970, para nos apercebermos disso, imediatamente.

Somente uma actividade que ultrapasse as lutas «economicistas» pode, em definitivo, conduzir a uma consciência que ultrapasse o trade-unionismo. Dificilmente se podem aceitar as premissas da dialéctica materialista, da teoria marxista do conhecimento, e contestar a razão de ser desta tese de Lenine. A necessidade de um partido operário de vanguarda decorre, portanto, da necessidade de desenvolver permanentemente tal actividade, e da impossibilidade em que se encontra a massa operária no seu conjunto de a desenvolver de maneira contínua em regime capitalista, em função da sua própria estratificação objectiva e dos poderosos obstáculos subjectivos que impedem uma acumulação constante, gradual, contínua, da consciência de classe no seu seio.

O partido de vanguarda funciona assim, objectivamente, como a memória colectiva da classe operária, a qual impede que os conhecimentos acumulados durante as fases de lutas generalizadas se percam nas inevitáveis fases consecutivas de refluxo dessas lutas, a qual assegura a continuidade da acumulação de consciência nas condições de descontinuidade da actividade política das massas.

5. Assim, o conceito de partido de vanguarda reconduz-nos ao da periodicidade das lutas de classe generalizadas, do carácter cíclico das grandes explosões operárias. Descobrimos, assim, um fundamento materialista suplementar da teoria leninista de organização. Porque a organização separada da vanguarda operária é função das tarefas a cumprir. Ela é um instrumento de trabalho destinado a um fim preciso: transformar as explosões operárias generalizadas, em assaltos vitoriosos contra a economia capitalista e o Estado burguês; derrubar com sucesso o sistema capitalista e edificar um Estado operário — a ditadura do proletariado — que prepara, com êxito, a construção duma sociedade socialista.

A organização de vanguarda, separada das massas, não é o único modelo de organização operária possível. Ela é função duma perspectiva histórica precisa: a da inevitabilidade das explosões revolucionárias a médio ou longo prazo, que não se transformarão em revoluções vitoriosas senão graças à actividade da vanguarda organizada. A margem desta actualidade da revolução, a organização separada da vanguarda apenas se justifica em função de objectivos puramente ideológicos, que correm o risco de degenerar em sectarismo. Sempre que as únicas lutas previsíveis forem lutas parciais, apenas é possível para as largas massas a acumulação gradual de experiências, e o único papel mediador que a vanguarda poderia desempenhar seria o da transmissão dos conhecimentos pela propaganda e pela educação — um papel que não justifica uma organização separada e que pode ser realizada no seio das organizações de massa, com a condição que elas respeitem um mínimo de democracia interna.

É preciso sublinhar a este propósito, que antes de 1914, Lenine apenas tinha uma visão precisa da actualidade da revolução para a Rússia (e alguns outros países da Europa oriental). Em função desta perspectiva, absteve-se de preconizar a organização separada da vanguarda em relação aos partidos sociais-democratas de massa antes de 4 de Agosto de 1914. Contentou-se em promover uma coordenação bastante frouxa entre as diversas correntes de esquerda, no seio da 2ª Internacional, sobretudo aquando das discussões que estalaram quanto à atitude a adoptar em relação à guerra imperialista que se anunciava. Só quando o deflagrar desta guerra o convenceu de que o sistema capitalista mundial estava a passar por uma fase histórica de crise geral, que colocava a revolução na ordem do dia num grande número de países, só nessa altura, estendeu o princípio da organização separada da vanguarda ao conjunto do globo e se pronunciou pela criação da Internacional Comunista.

O carácter cíclico das explosões de grandes lutas do conjunto do proletariado, que são potencialmente revolucionárias, deriva da complexidade das circunstâncias necessárias para abalar profundamente a sociedade burguesa e para conduzir os trabalhadores a ultrapassarem o estádio das lutas pelas reivindicações imediatas. Só excepcionalmente o conjunto dos factores necessários se encontrarão reunidos, quer os factores objectivos (crise profunda das relações de produção capitalistas) quer os subjectivos (desunião e paralisia crescentes das classes dominantes; enfraquecimento do aparelho de repressão; descontentamento crescente das massas laboriosas atingindo o nível duma cólera surda; sentimento crescente de que os motivos de descontentamento não podem ser sanados pela via das reformas graduais e de reajustamentos «legais», antes exigem urna acção directa; uma confiança crescente das massas na sua própria força, quer dizer, na sua capacidade de desencadear tal acção, etc.). É evidente, que atendendo às tendências profundas à interiorização das relações capitalistas, e à reprivatização duma massa de operários, após as lutas parciais, tendências essa inerentes ao próprio modo de produção capitalista, o concurso de circunstâncias que torna a situação madura para as explosões revolucionárias, ou potencialmente revolucionárias, tem de ser forçosamente excepcional. Pelas mesmas razões — às quais se alia neste caso o peso da derrota e do cepticismo que a engendra — uma explosão abortada, que não atingiu o seu objectivo, não pode ser seguida, a breve prazo, por uma outra vaga ascendente de lutas generalizadas, mas sim por um declínio da combatividade das massas, até que um novo conjunto de condições favoráveis desencadeie um novo ascenso. Falamos aqui de «explosões» não no sentido de acontecimentos isolados, mas de fases da luta de classes radicalizando-se e generalizando-se progressivamente, em oposição a outras fases de lutas dispersas, reduzidas e em volta de objectivos unicamente imediatos (não podemos aqui tratar das relações entre o ciclo económico e o ciclo da luta de classes, mas indicaremos somente de passagem que estas relações não são as de uma relação mecânica e directamente causal).

O papel que a organização de vanguarda tem a cumprir em relação às explosões periódicas de lutas generalizadas deve ser examinado simultaneamente pelas fases preparatórias das lutas potencialmente revolucionárias e pelas fases de lutas generalizadas propriamente ditas. Trata-se dum duplo aspecto da relação dialéctica «vanguarda/massas» que estão por elucidar. Mas a própria natureza da revolução socialista, e da tomada do poder pela destruição do aparelho de Estado burguês implica a necessidade duma acção conscientemente centralizadora de lutas parciais, mesmo que tenham uma grande amplitude. Se a sociedade burguesa pode efectivamente começar a desintegrar-se na periferia, nas fases de crise revolucionária agudas, esta desintegração nunca pode levar à dissolução automática do Estado burguês. Este tem de ser conscientemente destruído. Sempre que esta destruição não se efectiva, um processo contra-revolucionário pode ser encetado com êxito, mesmo por forças numéricamente restritas, opondo-se a massas muito numerosas. O papel desempenhado pelos restos do exército imperial durante as semanas decisivas de Novembro 1918 - Março 1919 na Alemanha, é disso a melhor ilustração, com as mais trágicas consequências históricas.

6. A relação entre a vanguarda e as massas em período não-revolucionário é antes de mais uma relação pedagógica de mediação. A organização de vanguarda não funciona só como a memória colectiva da classe, mas esforça-se, constantemente, por comunicar os conhecimentos acumulados, graças às lutas e às experiências passadas, ao maior número possível de proletários.

Quando falamos de processo pedagógico, não esquecemos, evidentemente, o carácter dialéctico desse processo, no qual não existe uma verdade acabada que é transmitida de maneira passiva a uma multidão que se supõe ignorante, mas antes um metabolismo de experiências, um fluxo e refluxo constante de impressões e de ideias, entre a massa menos politizada e a vanguarda organizada. Só quando este fluxo é firmemente estabelecido nos dois sentidos a vanguarda terá superado, definitivamente, o risco de se tornar uma seita ou uma capela, e desempenhará verdadeiramente o papel de memória e de acumulador de experiências colectivas de toda a classe.

A mediação entre o programa, resumindo todos os ensinamentos das lutas passadas e a sua generalização teórica, e às massas, cujas preocupações permanecem circunscritas em volta de objectivos imediatos, não pode fazer-se, exclusivamente, através duma pedagogia literária ainda que Lenine tenha sublinhado, justamente, que o que separa o revolucionário do reformista ou do centrista, é que o revolucionário prossegue a propaganda revolucionária e a preparação da revolução mesmo nas fases não-revolucionárias. Esta mediação exige, igualmente, uma forma especifica de acção. O «grande plano estratégico» de Lenine contido em Que Fazer? que consiste em transformar o partido de vanguarda em confluente e estimulante de todos os movimentos de protesto e de rebelião contra o regime estabelecido que não sejam objectivamente reaccionários, foi mais tarde estendido por ele para o conceito de reivindicações transitórias, retomado por Trotsky no seu Programa de Transição, em 1938.

A estratégia das reivindicações transitórias implica a elaboração de reivindicações que, embora partindo das preocupações imediatas das massas, não são realizáveis e assimiláveis no quadro do regime capitalista. Sempre que se tornam eixos de acções generalizadas da classe operária, as reivindicações transitórias tendem, portanto, a quebrar os quadros da economia capitalista e do Estado burguês. Só quando as massas têm imediatamente tais objectivos para as suas acções, é que estas poderão, dificilmente, ser reabsorvidas pelo regime, pela concessão de reformas. Ora elas só têm tais objectivos no momento duma greve geral, se tiverem sido sistematicamente preparadas anteriormente, tanto pela propaganda como pelas «acções exemplares», e pela formação no seu seio de quadros operários que encarnem todo este processo de mediação e que o transmitam quotidianamente aos seus companheiros de trabalho.

Seria acreditar em milhares de milagres supor a massa capaz de encontrar, por instinto, no momento duma grande explosão revolucionária, as reivindicações necessárias para fazer triunfar a revolução e capaz de encontrar a resposta às mil e uma manobras reformistas que permitiram o estrangulamento de todas as explosões revolucionárias na Europa Ocidental apesar das relações de força momentaneamente bastante favoráveis à revolução.

A centralização do partido, sobre a qual Lenine insistiu fortemente no debate em volta de Que Fazer? é antes de mais uma centralização política, a compreensão do facto de que a massa operária não acederá à consciência de classe, ao seu nível mais elevado, a não ser com a condição de ultrapassar o horizonte estreito das experiências nascidas de lutas parciais na condição, por outras palavras, de centralizar as suas experiências. O aspecto puramente organizacional desta centralização é secundário, no raciocínio de Lenine, e muito influenciado ainda pelas condições específicas de ilegalidade em que se construiu a social-democracia russa.

A fraqueza da argumentação de Rosa Luxemburgo contra Lenine, é que ela concentra o seu fogo sobre o aspecto organizacional da centralização leninista, menosprezando largamente o seu aspecto político. Fazendo isto, é obrigada a sugerir uma teoria da formação da consciência de classe proletária diferente da de Lenine, muito mais simplista e simultaneamente muito mais optimista, que considera que esta consciência de classe só pode ser função da luta e que a luta é suficiente para lhe assegurar a formação. A experiência histórica, e nomeadamente a da revolução Alemã, nega esta tese. Nem sequer as lutas mais amplas, mais tumultuosas, mais longas (pense-se no período de agitação e de lutas de massa quase ininterruptas de 1918 a 1923) bastaram para assegurar por si próprias um nível de consciência suficientemente elevado às massas operárias alemães que Ihes permitisse levar a cabo uma revolução vitoriosa. Como estas lutas estão condenadas ao declínio periódico, qualquer teoria que vê a formação desta consciência como simples função duma experiência de luta descontínua, sem papel acumulador, centralizador de experiências, e memória colectiva do partido de vanguarda, condena esta formação a um trágico trabalho de Sísifo.

Para prestar justiça a Rosa Luxemburgo, é necessário acrescentar que desde 1914, e sobretudo desde a eclosão da revolução Alemã, ela compreendeu perfeitamente que a diferenciação ideológica do proletariado não seria automaticamente ultrapassada pela amplitude das próprias lutas. É por isso que preconizou a organização autónoma da vanguarda operária, conceito que inclui nos seus escritos programáticos tais como «O Que quer a Liga Spartacus?». Pode portanto dizer-se que se tornou igualmente leninista, no final da sua vida.

7. Quando examinamos a relação «vanguarda/massas» em período revolucionário, o quadro muda e as insuficiências dos debates de 1902-1903 aparecem claramente. É sobretudo a propósito destas experiências que Lenine fez importantes correcções à sua teoria de organização, depois de 1905, de Agosto de 1914 e sobretudo em 1917.

A experiência histórica demonstrou, com efeito, que a existência dum Partido Social-Democrata organizado (para retomar a terminologia de Lenine dos anos 1902-1903) não é de modo nenhum garantia do papel objectivo que desempenhará na crise revolucionária. A história ofereceu-nos o exemplo de numerosos partidos que tendo, durante anos, apregoado as suas convicções marxistas, no momento duma crise revolucionária não só não se esforçaram por conduzir esta até à conquista do poder pelo proletariado, como ainda refrearam por todos os meios o ardor revolucionário desse mesmo proletariado, ou mesmo tomaram a iniciativa de organizar, deliberadamente, a vitória da contra-revolução. O comportamento da social-democracia alemã durante a crise revolucionária em 1918-1919 é disso o exemplo mais típico — mas não o único. A chegada ao poder de Hitler não é mais que o resultado final da derrota da revolução Alemã, derrota na qual a responsabilidade histórica dos Noske, Ebert, Scheidemann foi evidente.

Rosa Luxemburgo e Trotsky pressentiram tal eventualidade mais cedo que Lenine, nos anos 1903-1906. Por outras palavras, compreenderam que as próprias massas operárias que, nas condições de funcionamento «normal» do capitalismo, eram fortemente influenciadas pela ideologia burguesa e pequeno-burguesa, podiam, em momentos de crise revolucionária, dar provas de uma iniciativa, de uma combatividade, de uma energia revolucionária que ultrapassava de longe as dos militantes educados durante anos na teoria marxista.

Quando examinamos o balanço histórico das lutas de classe desde 1914, encontramos esta lição não uma vez ou duas, mas literalmente dezenas de vezes. Enumerar toda a lista de explosões revolucionárias em que os partidos operários foram ultrapassados pela actividade revolucionária das massas, é enumerar, praticamente, todas as crises revolucionárias que sucederam nos países imperialistas — e também de uma série de crises nos países coloniais e semi-coloniais.

Quererá isto dizer que a história demonstrou que a iniciativa espontânea das massas (inclusivamente as massas não organizadas) é condição suficiente de vitórias revolucionárias e que basta eliminar os «travões organizados» para assegurar a queda do capitalismo? De modo nenhum. Porque o balanço histórico é duplo a este respeito. Por um lado, as massas revelaram-se em numerosos momentos, «mais revolucionárias» que os partidos. Mas essas mesmas massas mostraram-se igualmente incapazes de assegurar por elas próprias o derrubamento do capitalismo.

Na ausência de uma vanguarda organizada que conquiste a hegemonia política no seu seio e que concentre a sua energia em objectivos precisos — destruição do aparelho de Estado burguês; tomar nas mãos os meios de produção e a sua organização num modo de produção socializado; construção de um novo poder — os seus mais corajosos assaltos, as suas mais audaciosas vitórias, permanecerão sem futuro. O exemplo mais trágico e mais convincente a este respeito foi fornecido pela experiência espanhola de Julho de 1936. Pode-se extrair uma série de conclusões, por conseguinte deste balanço histórico o que permite efectuar uma actualização da teoria leninista de organização — actualização essa que o próprio Lenine efectuou no decurso do período 1914-1921.

Antes de mais, é claro que a dialéctica «massas/partidos» complica-se e alarga-se, à luz do 4 de Agosto de 1914. Torna-se, assim uma dialéctica «massas-partidos não seguindo uma linha revolucionária-partidos revolucionários». A existência de partidos não constitui por si só uma garantia contra a reabsorção da classe operária pela ideologia burguesa e pequeno-burguesa. Pelo contrário, pode tornar-se o motor e o veículo desta reabsorção como foi o caso, primeiro, da Social-Democracia e, seguidamente, de uma série de PC de massa (em França, Itália, Grécia, etc...). Não se trata já de opor simples e mecanicamente a «organização" à «espontaneidade", mas de examinar em que condições teóricas e práticas a organização eleva a consciência de classe do proletariado, estimula a sua hostilidade em relação à sociedade burguesa no seu conjunto, prepara a sua intervenção massiva nas crises revolucionárias, no sentido do seu aprofundamento e da sua generalização, e educa os seus próprios militantes (a vanguarda) para uma intervenção nas crises, com vista à sua transformação em revoluções socialistas vitoriosas.

Por outro lado, é claro que a amplitude da actividade das massas, no momento de crises revolucionárias, não permite confinar o processo histórico à única relação recíproca «partidos-massas não organizadas». Toda a crise revolucionária, mesmo num país mediamente industrializado, levou, quase sempre, até agora, à criação de formas de auto-organização das massas (Sovietes, conselhos operários), embriões do futuro poder proletário e instrumentos imediatos de uma dualidade de poder de facto. O aspecto profundamente revolucionário destes órgãos de autor-organização e de auto-governo das massas, é que eles abrangem precisamente o conjunto do proletariado e dos explorados, incluindo as camadas não organizadas ou inactivas durante os períodos «calmos» ou de lutas de classe apenas parciais.

Lenine apreendeu a importância-chave do fenómeno dos Sovietes com um pouco de atraso relativamente a Trotsky, que via neles, desde 1906,a forma de organização geral da futura revolução russa vitoriosa, e a forma de organização universal das revoluções proletárias. Mas compreendeu-a a fundo — a não apenas de maneira «oportunista», nos momentos revolucionários — como lhe reprovam críticos contemporâneos mal intencionados. E Lenine compreendeu melhor que Trotsky a dialéctica particular «Sovietes-partido revolucionário» que este último não assimilou a fundo senão em 1917: se é impossível uma revolução num país industrializado sem organização de tipo Soviético — o que não implica evidentemente que a terminologia seja por todo o lado a mesma — do conjunto do proletariado, é igualmente impossível uma revolução vitoriosa sem que no seio dos Sovietes uma vanguarda organizada conquiste a hegemonia política através de um trabalho de explicação de propaganda e de agitação incansável, sem a sua acção organizadora, centralizadora, sobre a imensa energia das massas libertadas no momento da crise revolucionária.

Este «papel dirigente do partido» não implica nem o conceito de partido único (que contradiz pelo contrário o conceito de organização soviética, pois esta, na medida em que deve ser a organização do conjunto dos trabalhadores, há de reflectir inevitavelmente a diversidade dos níveis de consciência, de filiação ideológica e organizacional do próprio proletariado, quer dizer, implica a inevitável multiplicidade dos partidos operários e das tendências operárias), nem o de uma hegemonia adquirida por medidas administrativas ou repressivas. A história da revolução russa confirma-o: o emprego de tais medidas esteve sempre na proporção inversa da hegemonia política que detinha o partido bolchevique no seio do proletariado e das mais amplas massas. Durante todo o tempo em que essa hegemonia esteve garantida — adquirida pela superioridade da sua linha política e pela sua capacidade de convencer as massas desta — não teve de recorrer a nenhuma medida repressiva no seio da classe operária e da própria organização soviética (salvo medidas de auto-defesa contra aqueles que tinham, no sentido literal do termo, desencadeado a luta armada contra o poder dos Sovietes). Toda a medida administrativa e repressiva que foi levado a tomar no seio da classe operária resultou de um declínio prévio da sua influência política no seio de determinados sectores desta.

Podem-se procurar as causas deste declínio neste ou naquele erro político conjuntural cometido pelos dirigentes bolcheviques, em determinado momento preciso; o debate a este respeito, dura desde há meio século e não terminará tão cedo. Mas para quem estude esta época histórica com um mínimo de sentido objectivo, é evidente que as razões essenciais do isolamento progressivo dos bolcheviques no seio das massas em 1920-1921 não residem neste ou naquele aspecto secundário da situação ou da política de Lenine, mas nas condições objectivas que determinavam, por seu turno, uma passividade crescente das massas. (Não extraímos daqui, evidentemente, a conclusão menchevique, segundo a qual mais teria valido «não tomar o poder num país atrasado», nem a conclusão apologética para o estalinismo segundo a qual «o socialismo não se podia construir na Rússia senão com meios bárbaros, terroristas». Tudo depende do grau relativo da actividade das massas; uma política correcta do Partido poderia reformá-Ia, depois de 1923, poderosamente).

É aqui que se pode reconhecer quanto se enganam todos aqueles que, na esteira da Rosa Luxemburgo de 1903 — a de 1918 era já mais prudente! — acreditam ainda hoje que o recurso à actividade das massas é o único remédio histórico para os riscos de burocratização conservadora do partido. Pelo menos no caso da URSS a passividade crescente das massas precedeu (e numa larga medida determinou) a burocratização crescente do partido. E pode reconhecer-se a Lenine este mérito histórico se se comparar o grau de actividade das massas nos sovietes dirigidos politicamente pelos bolcheviques e a de outros sovietes, a duração do funcionamento real dos sovietes na Rússia com a do funcionamento de organismos de tipo soviético nos países onde os bolcheviques não foram nada hegemónicos no seio da classe operária, a existência e o «papel dominante» dum partido revolucionário de vanguarda de tipo leninista, não somente não podem ser considerados como a antítese de uma organização autónoma das massas em organismos de tipo soviético, mas pelo contrário asseguram-lhe uma existência mais longa e um melhor e mais eficaz funcionamento.

8. É evidente, que Lenine subestimou no decurso do debate de 1902-1903, os perigos que para o movimento operário podiam surgir do facto de se constituir uma burocracia no seu seio. Concentrou, nesta época, o seu fogo sobre a intelligentsia pequeno-burguesa e os «trade-unionistas», de horizontes curtos. Como Rosa Luxemburgo assimilou melhor a experiência da social-democracia alemã, que já nesta época era muito ambígua, pôde, melhor do que Lenine, pressentir que o perigo maior de conservadorismo e de adaptação ao status quo, não surgiria nem de uma nem de outros, mas do próprio aparelho social-democrata. Instalado nas organizações de massa e encostado às migalhas da «democracia burguesa», este aparelho tinha na realidade já «realizado o socialismo por sua própria conta». Ia adoptar uma orientação fundamentalmente conservadora, racionalizada pela necessidade de «defender as conquistas feitas». O revisionismo e o reformismo encontram aí as suas raízes materiais e sociais bem como ideológicas. Esta «dialéctica das conquistas parciais» foi em seguida estendida pela burocracia estalinista à escala mundial.

À luz da experiência histórica, Lenine aprendeu muito melhor, a partir de 1914, o papel-chave que a burocracia das organizações operárias pode desempenhar na transformação destas, de instrumento para impulsionar revoluções socialistas, em instrumentos de defesa do status quo social. Na sua luta contra a social-democracia internacional, deu uma importância essencial à análise da sua burocratização. A partir de 1918, apreendeu, profundamente, o perigo de burocratização do primeiro Estado operário, e consagrou uma boa parte dos últimos anos da sua vida a um combate contra este perigo.

Ao fazê-lo, Lenine elevou aliás o problema do domínio ideológico e psicológico («os hábitos burocráticos», «os métodos burocráticos», «a mentalidade burocrática») ao nível social. Para ele a burocracia é uma camada social que defende interesses sociais determinados (essencialmente no domínio da retribuição, do modo de vida, dos rendimentos. É por isso que não é uma classe social, não ocupa um lugar particular e historicamente necessário no processo de produção, coisa que fizeram, pelo menos numa época determinada da sua história, todas as classes sociais). E desde 1918, transfere uma boa parte deste raciocínio para o domínio do Estado soviético e para a luta contra a deformação burocrática deste.

Brandiu-se contra Lenine o argumento de que o modelo de organização do partido que defendia teria facilitado o processo de burocratização na URSS. Como esta crítica lhe foi efectivamente dirigida desde 1902-1903, aparece com a aureola de análise profética. Respondemos já mais atrás à objecção segundo a qual Lenine teria proposto um modelo de organização não-democrático. Porém, a questão do modelo de organização possível dos partidos operários merece uma análise mais detalhada.

Na medida em que se rejeite o clube de discussão ou a reunião informal e descontínua de indivíduos, a história forneceu-nos dois modelos essenciais de organização dos partidos operários: modelo baseado na selecção individual de militantes, a partir do seu nível de consciência individual e da sua actividade; e o das secções baseadas na circunscrição eleitoral, agrupando todos aqueles que afirmam a sua adesão aos princípios socialistas. Estes dois modelos, um «restrito», o outro «lato», mostram bastante bem a divisão da social-democracia russa em «bolcheviques» e «mencheviques».

Qual dos dois modelos se revelou mais democrático? Diremos à luz da experiência histórica, que o segundo se burocratizou mais rapidamente que o primeiro e que ao burocratizar-se, se reconverteu, aliás fundamentalmente, no segundo modelo.

Não é difícil compreender que o agrupamento de grande número de membros passivos — geralmente ausentes às reuniões — sem nível de consciência e «comprometimento» elevados, é bem mais facilmente manipulável por um aparelho ou por demagogos individuais, do que uma comunidade de activistas comprometidos toda a sua vida na luta por uma mesma causa, que julga a eficácia de cada um à luz da contribuição que ele traz para a defesa desta causa. Quantos mais elementos passivos um partido «lato» tiver, mais fácil se torna a burocratização. Quanto mais um partido de vanguarda fôr composto exclusivamente de militantes activos, maior é a garantia contra a burocratização. Foi, aliás afogando os elementos activos e conscientes num grande número de aderentes passivos, que Estaline facilitou grandemente a burocratização do partido bolchevique, depois da morte de Lenine —, Lenine exprimira já tal receio no seu famoso Testamento.

O problema da burocratização do partido operário — fenómeno social facilitado ou entravado por um determinado modelo de organização, mas de modo nenhum causado por este — está estreitamente ligado ao da democracia operária, isto é, à possibilidade de controle dos membros sobre o aparelho, e da elaboração da linha política em função dos interesses de classe a defender (e não, tendo em vista interesses sectoriais, ou pior ainda, tendo em vista a auto-justificação, perigo que ameaça qualquer organização numa sociedade baseada na produção mercantil e na divisão social do trabalho). A este respeito, o balanço histórico é também claro. No tempo de Lenine, o partido bolchevique foi um partido vivo e democrático, atravessando periodicamente debates de tendência apaixonados, permitindo a expressão de opinião em desacordo com as da direcção (ou da sua maioria) não excomungando nenhuma das posições oposicionistas, permitindo que a experiência resolvesse as divergências tácticas. Pode afirmar-se, sem cair em erro, que este partido foi mais democrático, e permitiu debates de tendência mais sistemáticos, do que qualquer partido operário importante na história — e certamente do que os partidos social-democratas.

É verdade que no momento em que foi maior o isolamento dos bolcheviques, no momento da introdução da NEP, Lenine propôs e conseguiu que se aprovasse a interdição das fracções no partido. De resto, só propôs isso por razões conjunturais e como medida passageira, e nunca como questão de princípio. Pode pensar-se que esta decisão foi errada — e à luz da história pensamos que o foi efectivamente, porque permitiu a Estaline asfixiar progressivamente o direito de tendência, e deste modo toda a democracia no interior do partido.

Mas aqueles que citam triunfalmente este «pecado» de Lenine como a confirmação do seu «pecado original» pretensamente anti-democrático esquecem, com demasiada facilidade, que no próprio momento em que Lenine se comprometeu a favor da supressão do direito de fracção, confirmou solenemente o direito do oposicionista Chliapnikov imprimir os seus pontos de vista oposicionais e de os distribuir, pagos pelo partido, a todos os membros do partido, em centenas de milhares de exemplares: que nos mostrem um único partido social-democrata em que isto tenha sido praticado, não dizemos sistematicamente, mas mesmo, só ocasionalmente!

E até no X Congresso do PCR, em que foi tomada a decisão de proibir as fracções, Lenine tornou a confirmar, não menos solenemente, o direito de tendência, opondo-se a uma emenda de Riazanov que quis impedir que se elegesse no futuro o comité central segundo as plataformas de tendências. Se surgem divergências fundamentais, não se pode impedir que elas sejam resolvidas perante o conjunto do partido, exclamou ele («Obras Completas», tomo 32, página 267 da edição alemã, Dietz Verlag, Berlim 1961). Foi a partir do momento em que a burocracia impediu tais discussões, e este direito de tendência, que o partido cessou de ser o instrumento revolucionário forjado por Lenine. Um outro argumento tem ainda sido citado para justificar a «tendência burocrática inerente» às concepções bolcheviques de organização que o próprio Lenine se teve que opor ao seu próprio «aparelho» cada vez que esboçou uma viragem para o «movimento revolucionário de massas», principalmente em Abril de 1917. Aqueles que defendem esta concepção esquecem um pequeno detalhe: é que neste drama histórico não havia apenas três personagens principais: o herói «positivo» — as massas revolucionárias; o «traidor» — o aparelho central do partido; e Lenine, oscilando entre uns e outros. Havia ainda milhares de operários bolcheviques militantes de base. Foi o empenhamento resoluto destes trabalhadores de vanguarda que permitiu que as «Teses de Abril» de Lenine triunfassem tão rapidamente sobre a resistência da maioria do comité central, no início da revolução russa. Foi a ausência desta camada mediadora decisiva que impediu Lenine de realizar o mesmo sucesso em 1922-1923, no decurso do seu «último combate» contra Estaline.

Eis-nos, portanto, chegados a uma categoria sociológica, em lugar de considerações psicológicas e puramente ideológicas. É esta categoria de trabalhadores de vanguarda, que incarnam a consciência de classe do proletariado, quase sós nas fases de recuo ou de estagnação do movimento de massas, em comunhão intima com a maioria da sua classe quando este mesmo movimento de massas atinge o seu nível mais elevado, que constitui o elo central da concepção leninista de organização.

Resumiremos esta concepção afirmando que ela consegue efectuar a união dos elementos de continuidade e de descontinuidade, de pedagogia e de aprendizagem permanente dos educadores, de centralização e de democracia, inerentes à luta proletária. Incarna, assim, a tradição humanista e revolucionária da história contemporânea.