quinta-feira, 16 de maio de 2024

APRESENTAÇÃO AO LIVRO "QUE FAZER" DE LÊNIN * FLORESTAN FERNANDES/SP

APRESENTAÇÃO AO LIVRO "QUE FAZER" DE LÊNIN
FLORESTAN FERNANDES/SP
Apresentação redigida para a publicação do livro “Que Fazer” realizada em 1978 pela Editora Hucitec, enquanto parte da Coleção Pensamento Socialista, dirigida por Florestan Fernandes.

São Paulo, 19-20 de março de 1978.

Transcrição de Andrey Santiago.

A publicação de Que Fazer? no Brasil constitui uma acontecimento de grande significação política, malgrado as presentes condições nas quais vivemos e a debilidade crônica do nosso movimento socialista. Está fora de duvida que essa não é a maior obra de Lênin. Contudo, ela caracteriza o momento no qual o leninismo se revela em seus componentes essenciais: em nove anos de experiência, de lutas constantes, de perseguições e de enorme fermentação criadora, um jovem “publicista” da ala esquerda da social-democracia russa punha-se à frente da vanguarda teórica desse partido. Apenas nove anos? O que se pode realizar quando a história se move para a frente e o pensamento revolucionário é exposto a todas as tensões de forças contrárias, da mais odiosa opressão de um regime autocrático cruel e de sua terrível repressão policial às inquietações da intelligentsia, dos estudantes, dos radicais de uma burguesia impotente e, em particular, das pressões crescentes das massas populares, do campo e da cidade! Em suma, quando o pensamento revolucionário aceita suas tarefas, as enfrenta com tenacidade, esclarecimento e coragem, procurando avançar sempre para à frente, relacionando meios e fins que podem transformar a “oportunidade histórica” em história real.

Haveria muito que debater sobre este pequeno livro e seu significado no movimento socialista revolucionário. Não obstante, seria fora de propósito ornamentar Que Fazer? com qualquer pretenso comentário erudito. Os seus leitores podem ressentir-se da precisão de Marx, por exemplo, nos comentários rigorosos à Crítica do Programa de Gotha. No entanto, Que Fazer? introduz no marxismo uma nova dimensão política. Na verdade, ele é uma resultante de um acidentado, heroico e construtivo labor coletivo: o que várias tendências do populismo, do radicalismo e do socialismo criaram na Rússia dos meados do século XIX à sua última década. Uma experiência, filtrada por Lênin e amadurecida por sua penetrante acuidade à-contribuição do movimento socialista europeu, especialmente na Alemanha, França e Inglaterra. Não se pode ignorar figuras como Plekhánov, Axerold e Zasulitich (além de outros companheiros do Iskra e da ala esquerda do P.O.S.D.R.), cuja produção teórica e visão dos problemas práticos do marxismo na Rússia alimentaram a aprendizagem e os primeiros tirocínios de Lênin. Todavia, ele os suplanta com uma rapidez incrível. Que Fazer? marca uma nova etapa, que deixa tudo para trás. De sua edição em diante, a Rússia não seria o cenário da transmutação pura e simples do marxismo em movimento revolucionário triunfante. Nascia o marxismo-leninismo como teoria revolucionária e como prática revolucionária organizada. A própria Europa ficava para trás, apesar da importância da II Internacional e dos seus grandes teóricos, e da densidade do movimento operário europeu.

Neste breve comentário, gostaria de concentrar-me em três questões mais importantes para os leitores brasileiros no momento atual. A primeira, diz respeito ao próprio Lênin: porque ele já estava politicamente qualificado para escrever uma obra tão simples, mas de consequências tão profundas e permanentes? A segunda, impõe-se como decorrência: o que representa a concepção do marxismo que Que Fazer? propõe? A terceira, vincula-se ao aqui e ao agora: o que um livro como esse testemunha quanto à nossa própria imaturidade e impotência políticas no Brasil e na América Latina?

Quanto ao primeiro tema, se Lênin era um “cérebro político” privilegiado (descrito por Trotsky como o único estrategista da revolução bolchevique), ele também recebe uma herança política privilegiada e viveu em um momento histórico privilegiado. Não penso em simplificar as coisas, para chegar a uma redução determinista do papel do herói na História. Isso seria indigno de qualquer comentário mais ou menos lúcido do significado de Que Fazer?; e, em particular, entraria em conflito com o modo pelo qual Lênin se via como um “publicista de partido”. Um livro escrito entre o outono de 1901 e fevereiro de 1902, publicado em março de 1902 — mas que se propunha os problemas centrais da teoria e da prática revolucionárias na Rússia e na Europa — transcende a uma datação localizada. Ele responde a muitas questões contraditórias e a grandeza criadora de Lênin aparece na propriedade das perguntas, que formula, e na qualidade das respostas (ou das soluções), que apresenta (numa linguagem que é sempre simples, direta, embora Marcadamente irônica e mordaz: Lênin não se propunha uma “leitura” de Marx — o que ele queria era descobrir os meios mais eficazes de converter uma revolução potencial. bastante forte para deixar a vanguarda teórica deslocada pelas exigências e alguns avanços das massas populares, no ponto de partida da desagregação do regime czarista e de uma revolução permanente na qual o marxismo se impusesse como uma cunha irremovível, capaz de suplantar o liberalismo e o radicalismo burgueses, o populismo, o socialismo moderado ou reformista, o terrorismo etc., e de . gerar uma revolução proletária vitoriosa).

Quantos revolucionários afirmaram (ou afirmam) que precisam sonhar e exigem a liberdade de sonhar? O importante é que o sonho, não estava longe da realidade. Ao contrário, respondia diretamente ao que era preciso fazer para passar-se de um “sonho” à sua concretização. Ora, aí temos uma complexa situação histórica. A simplificação e o reducionismo determinista existiram se se ignorasse a convergência de várias condições e de diversos fatores, imediatos ou remotos, e a função catalisadora de uma personalidade invulgar.

Ao iniciar a redação desse livro, Lênin já era uma figura de relevo no marxismo russo. Ainda não rompera com os principais teóricos contemporâneos e mal começara a experimentar; suas limitações no campo da ação revolucionária. De outro lado, através da II Internacional, de sua participação interna e externa na reelaboração da teoria socialista e na crítica do reformismo ou do oportunismo, infundira à sua própria posição uma intransigência marcante, um radicalismo maduro e um espírito prático à toda a prova. Não era um “publicista”, apenas, era um político experiente e um revolucionário que sonhava com a revolução procurando como encravá-la no seio de um regime odiado e destrutivo. Como ativista, já tinha demonstrado seu potencial como agitador e sua firmeza diante da repressão (uma. repressão desconhecida na Europa, mesmo nas piores circunstâncias). Como teórico, já havia comprovado que ultrapassara o período da aprendizagem: O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (publicado em 1899) dissocia a teoria da análise, mas atesta, por isso mesmo, o quanto Lênin dominava as doutrinas econômicas de Marx e o quanto, por sua vez, era capaz de interpretar segundo critérios marxistas rigorosos uma realidade histórica diferente, de modo original, independente e construtivo. Na verdade, ele irradiara o seu talento critico na direção dos múltiplos temas do debate político socialista, imperante dentro da Rússia, e evidenciara um avanço teórico relativo comparável ao nível que prevalecia no Exterior, no movimento socialista mundial. No sentido em que os franceses usam a expressão, ele era uma “personalidade política” reconhecida e impunha-se como uma influência pessoal com a qual se devia contar — e que deveria crescer. A criação da revista Iskra, destinada à discussão política e científica, e do jornal operário Zaria, que se voltava para, toda a Rússia, sugere que essa personalidade marcante encontrara um quadro histórico e outros companheiros — em suma, que o movimento socialista na Rússia, apesar das aparências, estava saltando acima do movimento socialista na Europa, especialmente na esfera da ação política direta, de levar a revolução socialista do plano das ideias e das aspirações para o plano prático.

As reflexões contidas em Que Fazer? correspondiam às “exigências da situação histórica”, não eram fruto de uma especulação “genial” e tampouco uma ousadia “isolada”. Lênin abordara antes os mesmos temas, em especial ao elaborar uma versão do programa da social-democracia russa, ao redigir o projeto de declaração da Iskra do Zaria, e de maneira mais concentrada no artigo “Por onde começar?” (de maio de 1901). Naquele projeto já se colocara contra “o praticismo estreito”, a dispersão e o caráter artesanal do movimento socialista, batendo-se por uma forma superior, mais unificada e melhor organizada de luta política. No artigo, por sua vez, antecipa a substância do livro. Pretende um sistema e um plano de atividade prática, o que o coloca contra o economismo (o sindicalismo reformista: estreito), que desemboca na impotência política, e contra o terror, que. não condena em princípio, mas caracteriza como “uma arma inoportuna, inoperante, que afasta os combatentes mais ativos de sua verdadeira tarefa” e que “desorganiza não as forças governamentais, mas as forças revolucionárias”. Temos aí toda uma equação política revolucionária, que não foi inventada por Lênin. Ela nascia de uma situação histórica “madura”, na qual os problemas de agitação, propaganda e organização impunham a reestruturação do movimento socialista. O fato de Lênin se defrontar sem nenhuma timidez com essa equação e soltar suas pontas, decifrando o caminho a seguir, diz por si mesmo o quanto ele era a personalidade para desempenhar tal papel. Um “produto da história” que era, também, um fator humano de sua transformação.

Quanto ao segundo tema, está na moda uma visão crítica negativista do “leninismo”. O leitor verá que uma boa parte desse ataque grosseiro (como certa pane das condenações refinadas), eclodiu contemporaneamente: Que Fazer? aparece como uma necessidade de desvencilhar o socialismo revolucionário desse terrível cipoal, continuamente reconstituído por. tantas forças contraditórias. Não pretendo travar um combate de cavaleiro andante contra a falta de imaginação. Contudo, convém que o leitor fique atento e compare: como Lênin ridiculariza seus críticos (e os críticos do marxismo); e como ele refuta ou afasta tantas suspeita com referência à “profissionalização” da atividade revolucionária e à organização do movimento socialista revolucionário. De um lado, temos forças contra-revolucionárias ou conservadoras não só organizadas econômica e. socialmente — contando também com a centralização política, proveniente da existência e do controle do Estado. De outro, a “anti-ordem” desordenada, fiel a fórmulas ideais e abstratas que não são bastante fortes, por si mesmas, para levar de vencida o ezarismo. Se avançarmos diretamente na linha profunda do pensamento de Lênin; ele propõe nada mais nada menos que a alternativa do anti-Estado, a organização de um Estado dentro de outro Estado, ou seja, a organização da revolução. De um golpe, ele supera as várias soluções do radicalismo burguês e do socialismo reformista e os imponderáveis do terrorismo. Para muitos, aí não haveria novidade. A novidade estaria apenas na russificação do marxismo, na “bolchevização”, que eliminaria do marxismo a sua vinculação espontânea com as massas e seu teor democrático. Ora, chegar a essas conclusões por efeito da propaganda conservadora e contra-revolucionária é explicável. Mantê-las, depois de ler Que Fazer? significa urna obliteração da razão socialista (se esta existe, de fato). O que Lênin faz com o marxismo só pode ser definido de uma maneira: ele converte o marxismo em processo revolucionário real. Se o fez tendo em vista as condições políticas do czarismo e da sociedade russa, disso ele não se poderia livrar…

Portanto, Lênin inaugura uma concepção do marxismo: a que rompe frontalmente com o elemento burguês em todos os sentidos, ainda dentro e contra a sociedade capitalista. Os grande teóricos do socialismo revolucionário europeu esperavam a vitória da revolução para extirpar a condição burguesa que impregnasse a todos os revolucionários, dos militantes de base ao tope da vanguarda, o que significa que a massa de seguidores poderia oscilar livremente, das opções socialistas às opções democrático-burguesas. O combate dos “métodos artesanais” significa acabar com isso na medida do possível. O que fica de “entranhadamente burguês” em um militante submetido a um treinamento profissional e para atuar clandestinamente? Depois que um partido revolucionário aceita tal evolução, ele tem condições para dar uma volta atrás, procedendo corno os socialistas alemães, franceses ou ingleses que traíram o socialismo para não traírem seus governos nacionais? De outro lado, um partido revolucionário que organiza a revolução deixa de vincular-se à oscilação das massas populares, de aproveitar produtivamente sua espontaneidade? Ele perde. por isso, seu caráter democrático? De onde vem a estrutura revolucionária e democrática de um partido socialista e da revolução socialista: da ordem que ambos combatem e devem destruir ou dos princípios fundamentais do socialismo? Por aí se verifica que Lênin converteu o marxismo em uma realidade política antes mesmo que o regime czarista se desagregasse e ocorresse a revolução proletária. Os que se apegaram demais às condições “democráticas” da ordem existente e pretendiam avançar suavemente, cultivando oportunismo, o reformismo, o gradualismo, o obreirismo, o populismo ou, no outro extremo, a violência episódica sem uma estrutura e continuidade políticas não podiam entender a sua linguagem. Parecia-lhes que a passagem para o socialismo perdia, desse modo, todo o encanto pequeno-burguês e toda a atração heroica. Uma revolução que se organiza politicamente, que centraliza suas forças, surge, como um anti-Estado, sob a aparência de uma “militarização” de um despotismo dissimulado sob o centralismo democrático.

Essa “leitura” de Lênin é a de todos os que se identificam com o socialismo como uma fonte de compensação psicológica ou moral. Depois que a burguesia se converteu em classe dominante reacionária ou contra-revolucionária, na Europa e nos Estados Unidos, que utilizou exemplarmente o que Engels descreveu como o “terrorismo burguês”, não existia outro caminho para chegar não “ao poder”, mas à construção de uma sociedade socialista. O que dizer da Rússia? Lênin aponta com sagacidade as diferenças: o que um regime ultra-opressivo deixa como espaço político “democrático” para as reivindicações do Povo, das classes trabalhadoras, dos movimentos radical-democráticos ou- socialistas. Um espaço zero. O teórico socialista se defronta com a necessidade de partir desse espaço zero: criar a revolução a partir de dentro da contra-revolução. Ou seja, o combate organizado à contra-revolução institucionalizada e estabilizada politicamente deve ser, desde o início, um processo revolucionário. Daí as frases famosas deste livro: “Sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário”; “toda a vida política é uma cadeia sem-fim composta de um número infinito de elos”; “é preciso sonhar” etc. A contraparte dessas frases famosas: sem organização não se mede a força de um movimento revolucionário e sem movimento revolucionário não se testa a teoria revolucionária: Lênin completa o marxismo. Introduz a dialética na esfera da ação política direta e do movimento de massas pelo socialismo.

Quanto ao terceiro ponto, Que Fazer? é um divisor de águas. Escrito e publicado no alvor do século XX, ele sintetiza os avanços do socialismo e do marxismo na Rússia no século anterior e assinala as promessas revolucionárias realmente fundadas. O livro todo constitui urna polêmica com o passado, com os contemporâneos, com os que se voltavam para a construção de uma Rússia democrática ou socialista. Onde se escreve um livro como esse, no momento em que um livro como esse pode ser publicado, a partir do combate ou da aceitação das ideias contidas em um livro como’ esse, pode-se constatar a existência de um movimento revolucionário denso, inquieto, maduro e indomável. A vitalidade do movimento socialista não nasce de si mesmo, apenas, nasce da sociedade em que se constitui e na qual se expande. O requisito histórico e o patamar de um movimento dessa envergadura é a existência de urna sociedade que caminha inexoravelmente, pelas pressões de baixo para cima, pela insatisfação das Massas “e pelo inconformismo das classes trabalhadoras, na direção da desagregação da ordem existente e da revolução social. Nesses quadros históricos há um socialismo potencial (diria, mesmo, um socialismo revolucionário potencial). O marxismo como teoria e como práxis pode ser facilmente irradiado nas várias direções da sociedade: as tarefas dos militantes, dos “teóricos” e “publicistas” nem por isso é mais fácil. Porque essa potencialidade traz consigo uma repressão feroz, uma autodefesa cega e impiedosa. Contudo, a violência institucional da contra-revolução não consolida a si própria. Ela fortalece as forças antagônicas. os inimigos da opressão e da contra-revolução: ou seja, em um primeiro momento, a revolução democrática de base popular; em outro momento seguinte. o controle do Estado pelas forças da revolução democrática e a transição para o socialismo. Em resumo, se não existissem peixes nos rios e no mar seria impossível pescar. O movimento socialista exige um mínimo de condições “objetivas” e “subjetivas” (e o mesmo se pode dizer da revolução socialista).

Dadas certas dessas condições, o que depende dos próprios socialistas para que o seu movimento se consolide, se irradie e, através das massas populares e das classes trabalhadoras, se converta em força política revolucionária? Excluindo-se Cuba, a experiência chilena e algumas manifestações verdadeiramente políticas da guerrilha, a América Latina foi o paraíso da contra-revolução (da contra-revolução mais elementar e odiosa: a que impede até a implantação de uma democracia-burguesa autêntica). Hoje, mais do que nunca, ela continua a ser o paraíso da contra-revolução, só que, agora, conjugando o “terrorismo burguês interno” com o “terrorismo burguês externo”. Os partidos que deveriam ser revolucionários (anarquistas, socialistas ou comunistas), devotaram-se à causa da consolidação da ordem, na esperança de que, dado o primeiro passo democrático, ter-se-ia uma situação histórica distinta. Em suma, bateram-se pela democracia-burguesa, como se fossem os campeões da liberdade. Trata-se de uma avaliação dura? Quanto tempo as burguesias nacionais ter-se-iam aguentado no poder se fossem atacadas de modo direto, organizado e eficiente? Ou estamos sujeitos a uma “fatalidade histórica”, que prolonga o período colonial e a tirania colonizadora depois da independência e, da expansão do Estado nacional? O diagnóstico correto, embora terrível para todos nós, é que nunca fizemos o que deveríamos ter feito. Os “revolucionários” quiseram manter seus privilégios ou os seus meio-privilégios, sintonizando-se com as elites no poder e com as classes dominantes. Formaram a sua ala radical, sempre pronta a esclarecer os donos do poder sobre o que certas reformas implicariam, para evitar uma aceleração da desagregação da ordem e os seus efeitos imprevisíveis… Não estou inventando. Voltamos as costas à organização da revolução e auxiliamos a contra-revolução, uns mais outros menos, uns conscientemente, outros sem ter consciência disso. E a “massa” da esquerda tem os olhos fitos no desfrute das vantagens do status de classe média. O que ameaça esse status entra em conflito com o socialismo democrático…

Todas essas reflexões pungentes precisam ser feitas e refeitas. Que Fazer? Desvenda essa realidade incomoda. Não fomos fascinados pelo “espontaneísmo” das massas: estas exerceram pouca atração sobre o pensamento político propriamente revolucionário, sempre preso a fórmulas importadas de fora, com frequência fórmulas com alta infecção burguesa (para usar outra expressão de Lênin). Fomos paralisados pela ideia de gradualismo democrático-burguês e pelo poder de coação da ordem. O que quer dizer que, na era da polivalência no “campo socialista”, ainda não sabemos quais são os caminhos que nos levarão à desagregação do nosso capitalismo selvagem e a soluções socialistas apropriadas à presente situação histórica. Um atraso monumental. O que Lênin fez, por exemplo, em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia só tentamos no plano da erudição. Por conseguinte, fora de Cuba não se criou um pensamento socialista revolucionário original. A principal tarefa teórica foi negligenciada até hoje, porque líderes, vanguardas e partidos da esquerda ou vivem a sua integridade socialista com extremo purismo ascético – e bem longe da atividade prática concreta – ou se concentram no “economicismo” e, pior que isso, em táticas imediatistas, de composição dentro da ordem, como se o socialismo pudesse ser o último estágio, a quinta-essência da “democracia”-burguesa. O reformismo pequeno-burguês como estilo de prática política. Ora, tudo isso está ocorrendo numa época em que a transição para o socialismo ficou mais difícil. Depois das grandes revoluções – da Rússia, da China, do Vietnã, da Iugoslávia e de Cuba – o cerco capitalista ao socialismo se apertar a partir de dentro e a partir de fora. A contra-revolução deixa de ser o produto de uma autocracia secular: a autocracia é organizada deliberadamente como a barreira, o bastião de defesa e a base política de contra-ataque militar e polícia do chamado “capitalismo tardio”. De outro lado, essa contra-revoução corrompe tudo, pelos meios de educação, comunicação de massa, consumo de massa, cooptação etc. Depois de setenta e seis anos, Que Fazer? continua válido. Todavia, a teoria revolucionária e a organização do movimento revolucionário precisam ser adaptadas a uma situação política muito diversa. Os que esperam que o “campo socialista” resolverá todos os problemas e dificuldades cometem um equívoco. A cooperação e o auxílio efetivo só poderão amparar os movimentos revolucionários viáveis, que comprovarem sua vitalidade e sua eficácia. Em outras palavras, é urgente superar a nossa circularidade e a nossa fraqueza inventiva. Os que são socialistas precisam devotar-se à tarefa de construir a teoria revolucionária exigida pela situação atual da América Latina.

Essa ponderações podem parecer exageradas. A partir do Brasil? O país que ficou no maior atraso dentro do movimento sindical, socialista e revolucionário da América Latina? Na época em que Lênin escreve e publicou Que Fazer?, quem pensaria que a Rússia, e não alguma nação avançada da Europa, se colocaria na vanguarda da história? Não penso que poderemos “queimar etapas”. O avanço real só pode ser conquistado graças e através das massas populares e das classes trabalhadoras. A nossa tarefa urgente consiste em propagar o socialismo revolucionário nesses setores da sociedade e, com o amadurecimento da sua experiência política, tentar-se o equacionamento de “por onde começar?”. Nem uma coisa nem outra será possível se se mantiver a tática “economista”, o falso obreirismo e o populismo das classes dominantes, a submissão a burguesia pró-imperialistas e entranhadamente antidemocráticas e contra-revolucionárias. Parece claro que voltamos, no momento que corre, a erros crônicos do passado, lançando as forças vivas de uma revolução democrática na maior confusão, abandono e impotência. Oitenta e nove anos de “regime republicano” já nos ensinaram o bastante. Não serão as classes possuidoras, especialmente os setores privilegiados nacionais e estrangeiros que irão favorecer e lavar a cabo a revolução democrática. E esta não pode ser pensada, por um socialista, como um desdobramento de etapas. Onde as massas populares e as classes trabalhadoras se afirma como as únicas alavancas da revolução democrática, esta só poderá conter uma transição burguesa extremamente curta. Cabe aos socialistas dinamizar a “revolução dentro da revolução”. Hoje, mais que no passado, a civilização do consumo de massas constitui o ópio do Povo. As massas populares e as classes trabalhadoras só podem ser educadas para o socialismo através de um forte movimento socialista, dentro do qual elas forneçam as bases, os quadros e as vanguardas, e através do controle do Estado e do sistema de opressão institucional “democrático”. O que assinala que se os caminhos são diversos, várias lições de Que Fazer? preservam toda a atualidade, sob a condição de que a opção pelo socialismo seja tomada para valer.

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