quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

CRIME ORGANIZADO EM CUBA NO TEMPO BATISTA * Observatório Proletários

CRIME ORGANIZADO EM CUBA NO TEMPO BATISTA


















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O crime organizado dos Estados Unidos iniciou suas atividades em Cuba nos primeiros anos da década de 20, com o tráfico de rum e outras bebidas alcoólicas; mas a criação de um império delituoso como tal começou a ser efetivado no final de 1933, quando se produziram os primeiros arranjos entre o novato coronel Batista e o financista da Máfia Meyer Lansky, por ordens expressas do grande Charles Lucky Luciano.

Imediatamente organizaram-se operações a cargo de quatro famílias mafiosas dirigidas pelo córsico Amleto Battisti y Lora, dom Amadeo Barletta Barletta, Santo Trafficante (pai) e o próprio Meyer Lansky.

Em 1935, Amleto Battisti ocupou as instalações do antigo Hotel Sevilla Biltmore, a um custo de dois milhões e meio de pesos (ouro americano)(1). O hotel arrastava uma hipoteca desde 1922, a cargo do City Bank Farmers Trust Company; depois de assumir a hipoteca, Battisti estabeleceu seu quartel operacional naquele antigo e elegante centro turístico de Havana, a 100 metros do Palácio Presidencial. Dois anos mais tarde, para legalizar suas múltiplas negociatas, fundaria o Banco de Créditos e Inversiones S.A.

O calabrês dom Amadeo Barletta Barletta era conhecido por ser o administrador dos bens da família Mussolini na América(2). Diz-se também que era um espião (na realidade, era um agente duplo) plantado em terra caribenha. O certo é que o Bureau Federal de Investigações (FBI) o incluiu na lista negra de 7 de fevereiro de 1942 e ordenou sua detenção e o confisco de seus bens; mas, avisado pelos grupos de inteligência da Máfia instalados em Havana, escapou da Ilha e foi refugiar-se secretamentena Argentina. Ao término da II Guerra Mundial, porém, Barletta voltou à capital cubana, como representante de grandes companhias norte-americanas (chegou a ser uma autoridade financeira no país, como representante da General Motors: ônibus e caminhões, carros Cadillac, Chevrolet, Oldsmobile e outros; tornou-se um importante acionista em laboratórios farmacêuticos; construiu o edifício de Infanta y Malecón, conhecido como Ambar Motor; abriu o canal 2 da televisão cubana e controlou o jornal El Mundo), constituindo em pouco tempo, através do Banco Atlântico, uma vertiginosa escalada de negócios, com dezenas de companhias de fachada(3).

A presença em Cuba de Santo Trafficante (pai) remete aos dias em que Lansky reuniu-se secretamente com o coronel Batista(4). Trafficante possuía extraordinária experiência como organizador do jogo no sul dos Estados Unidos e logo seria designado lugar-tenente de Lansky.

Em 1940, quando Lansky voltou a se instalar em Nova York (para converter-se em um dos artífices dos arranjos que se realizaram entre a Máfia norte-americana e o serviço secreto dos Estados Unidos para os assuntos da II Guerra Mundial), o velho Trafficante passou a controlar todos os interesses da Máfia em Cuba.

Naquela época, Trafficante encarregou-se também de preparar testas-de-ferro pertencentes à política cubana para que administrassem certos assuntos da Máfia instalados em Havana. Se durante os anos 30 os negócios na capital cubana foram tocados diretamente pelos sicilianos, córsicos, judeus e norte-americanos, a partir dos primeiros anos da década de 40 seriam incorporados elementos nacionais que dirigiram boa parte dos interesses múltiplos(5). Isso permitiu à Máfia não apenas controlar o poder aparente na Ilha, mas a cúpula dos diversos grupos da oposição que constituíam possíveis opções políticas.

Mas, sem dúvida, o mais importante de todos os mafiosos em Cuba foi o segundo chefe da Máfia norte-americana, Mayer Lansky, criador e chefe do Império de Havana. Judeu, nascido em Grozno, sul da antiga Rússia czarista (na época, território polonês), e levado por seus pais para os Estados Unidos, em 1911. Em seguida, Lansky encurtaria seu sobrenome (Mayer Suchwijansky) para torná-lo mais norte-americano.

Lansky foi merecedor de um estudo especial por parte dos historiadores cubanos. É necessário precisar que, desde os anos 30 até o final de 1958, não houve em nosso país um acontecimento político de magnitude ou um grande negócio sem que estivesse presente sua mão ou influência, negociando de maneira secreta ou intervindo através de testas-de-ferro, como atuante ou conselheiro.

Diz-se de Lansky que era engenhoso, persuasivo, uma inteligência prática, que preferia atuar na sombra. Era um grande amigo de Lucky Luciano desde a infância: estudaram juntos na mesma escola e, quando adolescentes, organizaram-se no mundo delituoso de Nova York.

Esses grupos de gangsteres acumularam enormes fortunas nos Estados Unidos nos anos em que imperou a Lei Seca. Entre 1930 e 1931, depois da morte de Joe the Boss, Masseria e Maranzano, Lucky Luciano entregou-se à tarefa de reorganizar a velha Máfia radicada nos Estados Unidos: mais de cem bandos de diversas origens fundiram-se em vinte e tantos grandes grupos que constituem a Máfia norte-americana atual.

Os acordos subscritos pela Máfia norte-americana e pelo coronel Batista, no final de 1933, seriam rememorados da seguinte maneira:

Lansky viajou à Havana para encontrar-se com o homem forte de Cuba e regressou com os direitos do jogo incluindo o controle do cassino que já funcionava no Hotel Nacional. Outros foram às empresas legais. Quando Lansky e eu começamos a falar de comprar propriedades, alguns nos olharam como se estivéssemos loucos. Alguns não podiam ver mais além de um prato de lentilhas.(6)

Para o estudo e uma compreensão cabal do processo que conduziu a criação em Cuba de um Estado a serviço da Máfia norte-americana, é necessário relembrar as reiteradas tentativas dos Estados Unidos de apoderar-se da Ilha, desde o princípio do século XIX, através da concessão, compra ou anexação de seu território, como confesso projeto de aniquilar os projetos e as aspirações da nação cubana. Atos e pretensões advertidos e denunciados pelo gênio político e militar José Martí.

Essas reiteradas ambições, no que se refere ao século XIX, puderam ser resumidas num fragmento da carta-instrução que Washington enviou ao general das tropas ianques, dispostas em 1897, para o assalto a terras cubanas.

Seu povo (o cubano) é indiferente em matéria de religião e, portanto, sua maioria é imoral; como é ao mesmo tempo de paixões vivas, muito sensual, e como não possui senão noções muito vagas do justo e do injusto, é propenso a procurar os prazeres não por meio do trabalho, mas por meio da violência; como resultado eficiente dessa falta de moralidade, despreza a vida. Está claro que a anexação imediata de elementos tão perturbadores e em número tão grande a nossa federação seria uma loucura; antes de fazê-lo, devemos sanear o país, ainda que seja aplicando o método que a Divina Providência aplicou em Sodoma e Gomorra. Será preciso destruir tudo o que os nossos canhões alcancem com o ferro e o fogo; será preciso extremar o bloqueio para que a fome e a peste, sua constante companheira, dizimem a sua população pacífica.(7)

Em consequência, o século XX iniciou-se em Cuba com um conjunto de imposições econômicas, políticas e sociais, desde a primeira intervenção militar dos Estados Unidos no país, com a submissão de uma maltratada oligarquia nativa, cada vez mais dependente, que permitiu ao imperialismo norte-americano, de maneira acelerada, realizar o processo de dominação da economia cubana, entre 1902 e 1933. Nesse período, conhecido como protetorado(8), a política externa de Washington com Cuba foi implementada através de reiteradas intervenções militares ou ameaças de intervenção, referendadas pela Emenda Platt; ingerências dos embaixadores norte-americanos radicados em Havana ou atividades realizadas pelos chamados pro-cônsules, designados pelo governo americano, quando se requeria algum tratamento especial, para conjurar ou manipular acontecimentos que podiam parecer escabrosos para os Estados Unidos. Esse período foi manejado por um seleto grupo de generais e doutores que, sem exceção, serviram de cobertura aos grandes interesses norte-americanos. De qualquer modo, esse esquema de domínio imposto à nação cubana nos primeiros trinta anos do século esgotou-se definitivamente no final da década de 20, como parte da crise de poder que os Estados Unidos enfrentariam em Cuba.

O novo período histórico que se abriu com a derrubada da tirania de Machado foi também analisado pelo seu protagonista mais nefasto, para justificar sua atuação contra os interesses do povo cubano:

Na oportunidade em que insurge triunfante, sob nossa direção, a Revolução dos Sargentos, em 1933, Cuba está em trânsito para se converter em uma República Soviética. A desordem, a matança impune nas ruas, as centenas de grupos e setores proclamando-se a si mesmos e atuando com autoridade; a falta de personalidade e de força moral do governo, impostos através da Emenda Platt, para comandar o Exército e a polícia que estavam, por seu lado, em estado de desintegração; a anarquia na área trabalhista e a derrubada da raquítica economia que ainda restava — um verdadeiro caos, enfim — constituíam o ambiente propício para a pequena e organizada força vermelha. Os sovietes já tinham sido estabelecidos em alguns centros de trabalho e o sepultamento em Havana dos restos de Julio Antonio Mella, em 29 de setembro daquele ano, assassinado no México anos antes, era o pretexto para repetir o golpe de Estado que havia sido dado por Trotsky contra Kerensky.

O Exército em peso e a vocação democrática que imprimíamos à Revolução Setembrista lutaram bravamente para expulsar de alguns engenhos açucareiros e de outros centros de trabalho os proselitistas do Kremlin. Nas memórias do embaixador Summer Welles há registro da nossa atitude firme contra os vermelhos.

Posteriormente, durante cerca de um lustro, Cuba perdeu-se em uma fase de conspirações, atentados, terrorismo e agitações. Então, organizações e indivíduos ambiciosos rejeitaram o caminho das urnas. As eleições gerais de 1936 não trouxeram a paz, sabotadas aqueles e esta pelos comunistas, por seus entusiasmados companheiros de percurso e os que faziam seu jogo por incompreensão ou por coincidência. Nesse estado, os comunistas e as outras organizações políticas e revolucionárias adotaram o lema da Constituição primeiro, opondo-se à celebração de outras eleições gerais e, como o nosso propósito era obter um clima de paz e de estabilidade institucional, nós os pegamos pela palavra.

Nem os partidos democráticos de minha candidatura, nem eu como líder, produzimos em nenhum instante manifestações que se identificassem com aquela doutrina [comunista](9) ou compartilhassem alguma de suas tendências.(10)

Foi tal a maturidade política da sociedade cubana nos últimos anos do machadismo, que as forças revolucionárias estiveram a ponto de impor uma virada radical. Mas seria apenas depois de 4 de setembrode 1933 que a reação começaria a recuperar posições até conferir à sociedade cubana um novo rumo de subordinação. É porisso que os serviços especiais dos Estados Unidos se entregaram à tarefa de elaborar novas fórmulas, cada vez mais sutis, em um acelerado reordenamento das tradicionais estruturas do poder em Cuba.

Esse conjunto de acontecimentos nos obriga a um estudo mais detalhado dos 25 anos que precederam o triunfo da Revolução Cubana. O período que se inicia em 1934 constitui o espaço histórico da entrada em Cuba de novas forças imperialistas (às vezes magistralmente entrelaçadas), que em poucos anos tecem uma complexa rede de manobras criadas para neutralizar as aspirações do povo cubano. Nesse processo, rapidamente se foi constituindo um Estado a serviço das piores forças da Máfia norte-americana.

Para alcançar esse objetivo, entraria em marcha um novo esquema, através de múltiplas operações conformadoras das cúpulas político-militares de vários presidentes. O estudo desse período revela a existência de um grupo de traços gerais comuns a toda essa complexa e, aparentemente, contraditória etapa da história da sociedade cubana.

Em primeiro lugar, no início da década de 30 observa-se uma acelerada penetração na economia cubana dos grupos financeiros liderados pela família Rockefeller (em seus dois ramos: John e William) e, em especial, no que se refere aos interesses da Standard Oil Company of New Jersey(11), que, utilizando um complexo empresarial bancário de grandemagnitude (City Bank, Chase National Bank e, mais tarde, o Chase Manhattan Bank), reforçaram o domínio imperialista em espaços essenciais da economia cubana.

Os novos grupos que assumiram o poder econômico e financeiro em Cuba, os grupos Rockefeller e afins (o banco alemão-norte-americano Schroeder, o complexo financeiro Sullivan & Cromwell, no qual eram figuras proeminentes os irmãos John e Allen Dulles e outros), também arrastavam um dos mais sinistros históricos, com suborno, chantagem, violência contra seus competidores, em todos os seus matizes, em uma mescla de procedimentos pérfidos e brutais, postos em prática nos Estados Unidos.

Chegamos à conclusão de que esse fenômeno ainda não foi suficientemente estudado se levarmos em conta a magnitude dos interesses financeiros que entram em jogo em Cuba, marcando também os mais importantes acontecimentos políticos e sociais do período.

O outro traço essencial é a entrada em Cuba da recém-organizada Máfia norte-americana. Ao contrário do que se pensava até bem pouco tempo atrás, a Máfia norte-americana era um grupo marginal no domínio da sociedade cubana: o golpe de Estado de 1952 não é a origem do poder nem do controle que veio a ter sobre a Ilha, mas sua coroação.

Desde o início, a capital cubana ofereceu-se à Máfia norte-americana como o mais esplendoroso dos paraísos, com o turismo e o jogo organizado a cargo das famíliasde Amleto Battisti e Amadeo Barletta Barletta, Santo Trafficante (pai e filho) e Mayer Lansky, encarregadas de controlar os negócios delituosos em Havana. Esse tipo de negócio crescia de maneira tão acelerada que em 1940 Cuba era considerada como um dos mais importantes centros da delinquência internacional.

Entre 1937 e 1940, Lansky instalou-se de maneira permanente em Cuba, para fundar “um verdadeiro império: nove cassinos e seis hotéis”(12). O operário gastronômico Iglesias Trabadelo afirma, em seu livro inédito de testemunhos:

A Máfia norte-americana, desde o primeiro quarto do século XX, operava maciçamente os cassinos nos hotéis de turismo, nos cabarés, nos centros de diversão, nos clubes aristocráticos e até nos bairros em que existiam casas de jogo populares, conforme nos testemunhou Stephan Yluck Klein, o Stéfano, conhecido como um grande técnico gastronômico, um verdadeiro profissional que nos trouxe, em sua longa vida, desde os anos 30, inúmeros ensinamentos. Stéfano veio a Cuba contratado pela Cuba American Realty Company, uma companhia de fachada(13) que começou a operar junto com outras empresas: o Hotel Sevilla Biltmore, o Gran Casino Nacional, o Summer Casino, o Château Madrid, o Sans Souci, o Hipódromo de Havana, La Concha, o Havana Biltmore, Country Club e outros. O Gran Casino Nacional era o mais luxuoso das Américas; quando o Country Club de Havana o comprou para anexá-lo ao seu terreno, suas ninfas passaram para o Tropicana.(14)

A Máfia começou a operar no Hipódromo importantes corridas vinculadas ao turismo e às apostas; ficaram também controlados os jogos populares. Os mais delirantes cabarés e outros centros de diversão e recreação foram inaugurados — restaurantes, negócios de usura —, até ser constituída uma Havana que começou a ser conhecida como “a Paris do Caribe” ou “o bordel mais deslumbrante da América”. Na medida em que os mafiosos passaram a controlar os bancos, fundaram empresas aéreas (e se iniciou para Cuba a era da cocaína), entidades financeiras, companhias de seguros, casas importadoras e exportadoras e muitos outros negócios, em uma insólita pirâmide(15) que incluía esferas do comércio, da indústria, do transporte, dos meios de comunicação: imprensa escrita, rádio e televisão, e, claro, o manejo da política.

Em correspondência com o poder econômico alcançado, era lógico que a Máfia norte-americana fizesse parte das forças que iriam operando nas mais imprevisíveis situações. Aliás, pelo volume de suas operações, presume-se que os lucros que produzia o Império de Havana eram muito mais substanciais do que se podia obter com a exploração burguesa do resto da economia cubana.

A outra força — a terceira — que começa a operar de maneira direta sobre a sociedade cubana são os serviços de inteligência dos Estados Unidos. Se, antes de 1933, eram usuais as intervenções ou ameaças de intervenções militares, à medida que o domínio e a corrupção do Estado cubano avançaram e que cresceu a rebeldia do povo, a inteligência norte-americana não só se dedicou a observar os acontecimentos — porque já não se tratava apenas de estudar ou recolher informações —, mas, também, em estreita aliança com os grupos financeiros dominantes e as famílias mafiosas em Havana (em um entrelaçamento em que os grandes negócios não poucas vezes eram compartilhados), os serviços especiais dos Estados Unidos começaram a utilizar os mais pérfidos métodos para manipular importantes acontecimentos, com o objetivo de controlar cada vez mais o destino da nação cubana.

Esse novo esquema de domínio imperialista se veria notavelmente reforçado com os arranjos que se produziram nos Estados Unidos, em 1942, entre a Máfia norte-americana e a inteligência dos Estados Unidos(16), com a imediata repercussão nos assuntos de Cuba.

Os serviços especiais norte-americanos tornaram-se cada vez mais ostensivos em um processo que, depois de 1952, avançaria extraordinariamente, na medida em que ganhava força e prestígio o movimento revolucionário dirigido por Fidel Castro. As redes da Agência Central de Inteligência (CIA) e outras agências especiais dos Estados Unidos estenderam cada vez mais o seu poder. Liyman Kirkpatrik, controlador geral da CIA, investido pela administração dos Estados Unidos de poderes excepcionais, a partir de 1955 começou a realizar contínuas viagens a Havana, em operações de apoio à tirania dirigida pelo general Batista(17).

Essa trilogia de forças (grupos financeiros-Máfia-serviços especiais norte-americanos) constituiu o setor mais diabólico até então radicado na Ilha e responsável direto por um processo cujo resultado essencial seria a constituição de um Estado de caráter criminoso.

Um estudo desse fenômeno demonstra que, por volta de 1937 a 1940, já se encontrava em Cuba a pleno vapor um Estado extraordinariamente flexível, em que tudo era perdoável, permitido, tolerável, mais eficiente para os interesses do imperialismo norte-americano e cadavez mais repressivo em relação às aspirações do povo cubano.

Em poucos anos desenhou-se uma deslumbrante Havana para desfrute do turismo endinheirado; grandes operações com as fortunas não-legalizadas nos Estados Unidos começaram a ser efetuadas através dos bancos instalados na capital cubana, utilizando centenas de companhias de fachada.

Em pouco tempo, em 1937, o Chase National Bank assumiu a cobertura dos interesses da Máfia no Hipódromo de Havana(18). Eram também usuais as típicas operações de lavagem, das quais participava o The National City Bank of New York(19) (leve-se em conta que os bancos realizavam essas operações sem que o Estado cubano exercesse controle; e, se alguma dessas operações era descoberta, pedia-se desculpas, simplesmente, pela falta deprofissionalismo, e isso bastava); ou o reordenamento que realizou The Trust Company of Cuba, com os negócios da família Barletta, quando assumiu em 1954 o Banco Atlântico(20). Em 1949, quase diariamente entrava em Cuba, procedente dos Estados Unidos, uma caixa de segurança com destino ao Banco Gelats, contendo 1 milhão de dólares(21). Além disso, existem evidências documentais de que a Máfia também operou de maneira direta no Banco Financeiro S.A., controlado por uma figura que liderava um verdadeiro império açucareiro(22). Esses poucos casos exemplificam de início as múltiplas e complexas relações entre os grupos financeiros e a Máfia em Cuba.

O Grande Eleito (depois Batista passaria a ser o Grande Eleitor) passou de sargento taquígrafo a coronel, de Chefe do Exército a Major General, em um complicado e escabroso processo no qual depôs vários presidentes, antes de instalar-se, em 1940, na Primeira Magistratura.

A explicação da bem-sucedida voragem política que ilustres personagens de Washington, gênios da Máfia e quadros seletos da inteligência norte-americana aconselhavam, instruíam e assessoravam ao usurpador de 4 de setembro está nas circunstâncias excepcionais que atravessou a nação cubana naquela época.

Naquele momento, as forças imperialistas desataram um conjunto de manobras políticas para neutralizar ou reprimir a rebeldia popular, e, para implementar internamente essas medidas, Batista mostrou ser a pessoa mais adequada. O ex-sargento demonstrou que era capaz de garantir tais objetivos. Mas, à margem de qualquer outra consideração, é inegável que o sucesso de suas gestões se deu essencialmente porque novas forças imperialistas que se instalaram em Cuba estavam em acelerado processo de ascensão dentro da própria sociedade norte-americana.

Era lógico, então, que os interesses dessas forças seguissem um curso que, nos primórdios da II Guerra Mundial, possuía uma coerência realmente impressionante.

De qualquer modo, para assumir inteiramente aquele período, Batista teve de legalizar as operações do Império de Havana, enquanto propiciava um clima extraordinariamente favorável para o desenvolvimento dos novos grupos financeiros. Na ordem interna, desatou uma repressão feroz, além de fazer progressivamente um conjunto de manobras pouco estudadas ainda, à imagem e semelhança do modo como o imperialismo norte-americano abordou os acontecimentos internacionais da época.

Um estudo pormenorizado dos anos 30, além dos combates no Hotel Nacional, do assassinato de Antonio Guiteras ou da brutal repressão da greve de 1935, incluiria também as operações e manobras, tanto econômicas quanto políticas, realizadas com o fim de inserir-se na dinâmica dos acontecimentos que se produziram durante a II Guerra Mundial e que deram a Batista a possibilidade de manipular diversos aspectos do processo antifascista em Cuba.

Os anos de 1937 e 1938 são vitais para entender esse novo e complexo período da sociedade cubana. O esquema imposto pelos Estados Unidos (grupos financeiros-Máfia-serviços de inteligência) foi um começo tão desconcertante que não poucas personalidades reagiram com estranheza, quase assombradas, diante das manobras que o coronel Batista iniciava como testa-de-ferro do poder aparente. Em 1937, Eduardo R. Chibás escreveu, em relação às manobras de Batista para implementar a Lei de Coordenação Açucareira e a Moratória Hipotecária:

Estas propostas, sem dúvida, são de claro caráter revolucionário. Por propugná-las, até há bem pouco tempo, uma pessoa era acusada de comunista e mandada à prisão. Agora, o coronel Batista tomou-as para si. O projeto se lança a fundo contra interesses poderosos que, dentro do marco colonial, têm em suas mãos a hegemonia econômica e que não se deixaram tirar sem lutar, sem defender-se com todas as armas a seu alcance. Na realidade, pelo presente, esses interesses não se sentem perturbados; não acreditam nessa sinceridade revolucionária. Só veem no Plano Trienal um procedimento justificativo de Batista para se manter no poder e suprimir as atividades políticas. Não concebem que Batista denuncie a aliança com eles, renuncie à função cômoda e tranquila de conservador da ordem estabelecida, pelo papel mais responsável de reformador social.(23)

Batista, extraordinário simulador, manejou de maneira triunfal os eixos do esquema de poder imperialista em Cuba, assessorado pelos serviços especiais dos Estados Unidos; mas quando o presidente norte-americano, Franklin Delano Roosevelt, regressou da reunião de Teheran, trazia já na sua pastaum assunto que considerava de singular importância. Durante os anos de guerra, as ideias marxistas haviam alcançado um extraordinário sucesso na maior das Antilhas; por causa disso, apesar dos compromissos e alianças antifascistas, a inteligência norte-americana considerou que o mais importante em Cuba, naquele momento, era a repressão aos comunistas e ao movimento sindical.

No entanto, o mais assombroso da manobra foi o enfoque que o governo norte-americano deu a esse assunto. Roosevelt não entregaria essa delicada missão às agências governamentais dos Estados Unidos, nem sequer a seu embaixador em Havana, senhor Sprulli Braden, mas ao financista Meyer Lansky, pois as relações da Máfia com Batista eram tão próximas que:

Quandoo presidente Franklin Delano Roosevelt quis convencer o ditadorcubano a não se reeleger nas eleições de 1944, Lansky foiescolhido como intermediário americano. O método de Batista comoditador já era bem conhecido, e os Estados Unidos não podiam searriscar a uma rebelião na Ilha no momento critico da guerra.Lansky levou a cabo sua missão, e Grau San Martín foi eleitopresidente de Cuba.(24)

Ainda estão por realizar-se os estudos da implementação dos arranjos entre batistianos e autênticos, assessorados pela Máfia e pelos serviços de Inteligência dos Estados Unidos. O certo é que, para instalar-se no poder, Grau teve de assumir um conjunto de compromissos, entre os quais o de incluir em seu governo um vice-presidente sem passado histórico com o autenticismo.

O doutor Grau San Martín foi inserido em uma conjuntura extremamente complexa e vorazmente perigosa. As forças com as quais se comprometeu lhe abriram o caminho para o poder. O governo dos Estados Unidos (incluindo um seleto grupo de pessoas que atendiam aos interesses de Batista) imporia suas condições.

De qualquer forma, a análise dos acontecimentos reflete que Grau ainda tinha dúvidas em relação às intrigas e confabulações de seus novos amigos. Eles o deixariam mesmo ocupar a Presidência? Eles o deixariam no Palácio por muito tempo? Em honra à verdade histórica, o professor de Fisiologia não era um homem com fama de implacável na política. Ao contrário, todos acreditavam qu eele fosse capaz de qualquer desvario. Por isso, alguns não entenderam de início o que estava ocorrendo realmente com essas inexplicáveis alianças. Mas Batista surpreendeu a todos. Seguiu ao pé da letra o projeto dos invisíveis. A própria imprensa norte-americana não acreditava que ele fosse capaz de assumir um papel à margem da força e expressou sua admiração ao ver sua extraordinária flexibilidade.

Os primeiros seis meses de 1944, no caminho das eleições, estiveram permeados por grandes manobras, que às vezes nem os mais próximos colaboradores dos opositores chegaram a compreender.

A imagem de Batista emergiu como a de um grande democrata, inclusive nos meios internacionais. Ficavam para trás onze anos de traições e manobras abjetas. Batista assombrava a todos com o desbordo de cortesia e transparência que exibiu durante a campanha eleitoral.

Todos ou quase todos esperavam que ele forçasse as eleições; mas, contrário a uma lógica de prolongadas arbitrariedades, o general converteu-se no mais autêntico partidário do doutor Ramón Grau de San Martín. A primeira coisa que fez foi ordenar a seus políticos e militares que de forma alguma atacassem Grau, nem no plano social nem no plano político. Era seu desejo que se levassem a cabo as eleições mais democráticas de toda a história da República; assistido por fiéis ajudantes, ele tratou de garantir que Grau não teria nenhum problema.

Por aqueles dias realizaram-se silenciosas e extraordinárias manipulações, das quais fizeram parte figuras eficientes. Eugênio Menéndez, um dos personagens prediletos do presidente, acompanhou-o às reuniões mais importantes, às secretas e às discretas. Menéndez era conhecido como um misterioso homem do jogo. Outros contatos foram feitos por Jaime Marimé, secretário particular de Batista, e os arranjos que tinham a ver com a imprensa foram manejados por Antonio D’Torra, que gozava de sua mais absoluta confiança. D’Torra, de aspecto jovial, era a imagem viva do homem bonachão; aparecia nas redações dos jornais com um chapéu de aba grande, que lhe cobria quase todo o rosto. Dele se dizia que, depois de ter alcançado os favores do poder, se havia esquecido de seus velhos amigos.

Alguns jornalistas notaram naquele momento que algo raro se precipitava sobre a política cubana, e um deles escreveu o seguinte:

Inexplicavelmente — mesmo que se suponha que exista alguma explicação política —, o general Batista trata sempre de fazer com que seus amigos mantenham boas relações com o doutor Ramón Grau San Martín. Em 1940, o candidato da Coalizão Socialista Democrática subiu um dia a seu carro de cor preta, pôs no rádio a conga Batista Presidente e se dirigiu à 17 y J com o objetivo de buscar o doutor Grau e irem juntos ao Palácio, onde tinham acertada uma entrevista com o então chefe de Estado, doutor Laredo Brú (é evidente que, quando Grau subiu no carro do hoje presidente, o motorista desligou o rádio).

Ambos os candidatos chegaram ao Palácio pela porta da rua Refúgio e, com sorrisos, resistiram às perguntas dos jornalistas que, num grande grupo, esperavam os dois políticos. Grau vestia um terno de crash branco e Batista, um linho cru, com um chapéu de palha fina; moviam-se entre repórteres e curiosos que acudiram com a saudável intenção de ser vistos pelos candidatos. Batista não desperdiçava uma oportunidade para elogiar o doutor Grau. Este, correspondendo às gentilezas, porém parcamente, tributava esporadicamente algum velado elogio a Fulgêncio Batista. Finalmente, a galanteria encurralou tanto o líder do autenticismo que de seus lábios professorais aflorou a promessa, não cumprida depois, de que “se o general Batista fosse eleito seria o primeiro a felicitá-lo”. Batista disse a mesma coisa com respeito ao chefe do PRC. Terminada a entrevista, os dois líderes subiram pela escada de mármore e foram recebidos no segundo andar pelo doutor Laredo, que os conduziu ao Salão dos Espelhos. Ali foram fotografados, e uma das fotografias, na qual o general Batista apertava com a mão direita a mão esquerda do doutor Grau, com o coronel Laredo ao fundo — e as mãos no ar —, espalhou-se pelo interior da República, dias depois, como propaganda política.

Alguns amigos de Batista, cheios de más intenções, diziam aos camponeses que aquela fotografia falava eloquentemente da amizade que existia entre os dois oponentes, mas não sabemos se Batista sabia o que estava sendo feito.

O general Batista já ocupava a Presidência da República e, em várias oportunidades, apesar de seus cáusticos discursos contra Grau durante a campanha presidencial, sugeriu a seus amigos que tratassem de ser gentis com o presidente do PRC. Conhecemos casos recentes em que o presidente intercedeu para que seu máximo adversário político não fosse atacado. O que haverá por trás de tudo isso?(25)

Para a transição política de 1944, foram tomadas todas as medidas; empregaram-se todos os métodos, desde os que tinham aparência de mais absoluta legalidade até as trapaças mais incríveis. O estudo dos acontecimentos nos leva à conclusão de que, no período de janeiro de 1944 a novembro 1958, em relação à política que os Estados Unidos elaboraram contra Cuba, produziu-se um dos mais incríveis casamentos entre os serviços de inteligência dos Estados Unidos e as famílias da Máfia norte-americana instaladas em Havana. Foi durante o mandato de Franklin Delano Roosevelt que se abriu esse espaço, com apoio irrestrito para o general Batista. Mas em 1944, na hora de designar a pessoa que serviria de garantia aos novos arranjos políticos que estavam por se realizar, foi a decisão de Roosevelt a gota que selou o destino de Cuba.

Em consequência, desde o Palácio, Batista ordenou que as eleições fossem estritamente democráticas. Depois de onze anos no poder, em um discurso que proferiu diante de 25 mil pessoas, declarou que o povo cubano havia “esperado muito tempo por uma verdadeira democracia. E, enfim, podemos ver esse dia de liberdade”.

As ordens foram dadas aos coronéis chefes dos regimentos das províncias; aos capitães, que nos municípios dirigiam os esquadrões; aos tenentes, sargentos e cabos, encarregados das centrais açucareiras, povoados e colônias; aos políticos e funcionários, cuja responsabilidade consistia em dirigir e controlar os comícios. Nada nem ninguém, sob nenhum conceito, podia interferir nem manipular o resultado das eleições.

Era algo que nunca havia ocorrido na Ilha. Algo totalmente insólito. Em um artigo publicado pela imprensa cubana, tratando de demonstrar a vocação democrática de Batista, enfatizou-se:

O presidente Batista teve o cuidado de fazer com que os funcionáriose as forças armadas conhecessem seu propósito patriótico. Sem ele, mesmo que o Primeiro Magistrado estivesse sinceramente disposto a cumprir com seu dever, a paixão política talvez tivesse desviado alguns de seu caminho com tênues pinceladas, o que a previsão presidencial converteu em algo mais alvo que o arminho.(26)

No entanto, para evitar surpresas, designaram o doutor Carlos Saladrigas como candidato opositor a Grau San Martín. Saladrigas era um político completamente incapaz e frustrado. Havia sido primeiro-ministro nos primeiros tempos do regime semiparlamentar e, por ser um homem de absoluta confiança de Batista, presidiu também durante algum tempo o Conselho de Ministros; ele foi interpelado em várias ocasiões e demonstrou ser um político pouco hábil, que não possuía garra, o carisma nem o prestígio para ganhar eleições como aquelas. E, como se fosse pouco, fez uma propaganda com fotos nas quais aparecia entre duas bandeiras, de um lado a de Cuba e do outro a norte-americana. Quem em Cuba votaria num homem que já se mostrava assim? Além disso, Saladrigas era visto por todos como a própria imagem de Batista, a quem o povo repudiava sinceramente.

Nos últimos meses de 1944 produziram-se alianças e divisões entre os partidos oponentes que favoreceram os autênticos, sem contar as desfavoráveis condições psicológicas desatadas pela escassez e as dificuldades que trouxe a II Guerra Mundial, acentuadas pelos sórdidos conchavos, pelo mercado negro e pelos negócios fraudulentos, cuja responsabilidade recaía também sobre o candidato do governo.

Era inegável que a maior força política opositora concentrava-se em torno do prestígio que havia alcançado o doutor Ramón Grau San Martín, em seus longos anos de reticência ao batistado. O assombroso foi que, naquelas eleições, Batista colocasse em prática o voto direto, secreto e obrigatório; a neutralidade do exército e as ordens mais estritas para que o processo eleitoral fosse realizado, ao contrário dessa longa tradição, sem pressões, tiros nem golpes.

Depois de consumar-se a transição política, a revista norte-americana Time publicou um artigo, reproduzido também em Cuba, em que, não sem um pouco de cinismo, recordava que desde 1933 nenhum candidato governamental cubano havia perdido as eleições, já que esses governos sempre eram eleitos com o respaldo do governo norte-americano.

O próprio embaixador dos Estados Unidos em Havana, senhor Braden, colocou em marcha uma nova fórmula que, a partir de então, regeria a política de seu país com Cuba. Braden proibiu terminantemente, em nome de seu governo, que norte-americanos que fossem proprietários de negócios ou de representações na Ilha destinassem fundos às próximas eleições, coisa que até então era uma prática usual. Paradoxalmente, para justificar essa medida, começou-se a falar da “maturidade política da democracia cubana”.

Já era uma tradição que as empresas norte-americanas, cidadãos daquele país instalados em Cuba ou investidores na indústria açucareira, nas comunicações, nos bancos, nas minas, nas terras ou em qualquer outro setor da economia destinassem certa quantidade de dinheiro para a eleição de candidatos governamentais, com os quais, evidentemente, tinham estreitas relações. Isso assegurava-lhes proteção.

Mas, nas eleições de 1944, a Máfia norte-americana introduziu um novo elemento: dedicaram todos os esforços ao arranjo com as partes. O embaixador Sprulli Braden, cumprindo as ordens dadas por Roosevelt,iniciou uma retirada para apagar a imagem dos Estados Unidos intervindo sempre na política interna de Cuba. Foi uma grande farsa. Todos deviam pensar que o doutor Ramón Grau San Martín chegava à Presidência em um clima de extraordinária democracia.

Na realidade, Braden realizou muitas outras manobras, não só com os cidadãos americanos mas também com os súditos ingleses radicados na Ilha, para que ninguém apoiasse o candidato batistiano. Por causa de Braden, Saladrigas deixou de receber os fundos vultosos que as companhias norte-americanas destinavam às campanhas políticas do candidato governamental.

Calcula-se que, daquela vez, Braden impediu que quase 3 milhões de dólares chegassem à coalizão que promovia a candidatura de Saladrigas, cifra de extraordinária magnitude para os anos da II Guerra Mundial. Isso também beneficiou a ascensão ao poder da cúpula autêntica.

Para que se tenha uma idéia exata da perfídia com que foram tomadas algumas decisões, basta dizer que as medidas promovidas pelo embaixador Braden foram manipuladas por alguns políticos do antigo governo como algo estritamente pessoal. Portanto, chegou-se a exigir que o governo norte-americano substituísse seu embaixador em Havana.

Em seguida, as forças armadas ofereceram uma homenagem ao presidente eleito no Clube dos Oficiais de Columbia; cinco dias depois, Grau partiu para os Estados Unidos a convite de Roosevelt. Grau fez escala em Miami, com o ouvido receptivo aos conselhos e sugestões dos “invisíveis”, e, no dia seguinte, continuou a viagem para Washington, enquanto Batista se preparava para abandonar o Palácio Presidencial, tomando um conjunto de medidas. Distanciou também do país o comandante Mariano Faget, enviando-o aos Estados Unidos para realizar estudos nos centros especializados do Bureau Federal de Investigações (FBI). Faget havia sido um de seus mais fiéis e eficazes aliados vinculados aos serviços especiais norte-americanos; destacara-se por sua astúcia na repressão contra os inimigos do regime e pelas boas relações que tinha com Meyer Lansky. Havia golpeado. Havia torturado. Mas, como ainda restava muito a fazer, Batista não o deixaria para trás.

Coma explosão de milhares de fogos e o brilho de luzes e marchas, Grau San Martín subiu ao poder. Repicaram os sinos. Desde a fortaleza de La Cabana dispararam as salvas da artilharia, na medida em que a avenida de Las Misiones era invadida por uma multidão, desejosa de presenciar a passagem oficial do poder ao autenticismo.

Um mês depois, por ocasião da visita que Grau fez aos Estados unidos, o jornalista Eladi Secades, com um humor muito ácido, afirmou que:

Em Cuba há duas coisas que não pode deixar de fazer um presidente eleito. Jantar com os rotarianos e fazer uma viagem ao Norte. Um candidato que obtenha a maioria eleitoral ganha também um jogo de talheres para um banquete no Hotel Nacional e uma passagem de ida e volta para Washington. Por isso nós achamos que o convite do governo americano deveria ser sempre nos primeiros dias do mês de outubro. Só assim o presidente eleito, além de visitar a Casa Branca e o túmulo do soldado desconhecido, poderia ver também os jogos da Série Mundial [de beisebol].(27)

A alegria do povo foi imensa, sem saber que a cúpula autêntica assumiria antigos machadistas, batistianos, agentes da inteligência dos Estados Unidos e elementos vinculados à Máfia norte-americana. Foram tais os compromissos de Grau que, a poucas semanas de haver chegado ao Palácio, era defendido de forma incondicional somente por três personagens que estavam (e estariam) estrategicamente vinculados ao general Batista: o general Francisco Tabernilla Dolz (desde a fortaleza de La Cabana) e os senadores Santiaguito Rey Pernas e Guillermo Alonso Pujol, conselheiro de Batista desde 1937.
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Memória histórica no esquecimento
Colabora Emerson Xavier-PE

22 de dezembro de 1946 encontro em Havana da máfia ítalo-norte-americana no hotel nacional Habana: Luki Luciano, Santos Traficantes, Frank Sinatra, a Cuba da corrupção corrupção.

A invasão da Sicília, as ligações entre a CIA, a Máfia e a Democracia Cristã, a utilização dos 250 mil nazistas exfiltrados* para se colocarem a serviço do "Ocidente vitorioso" "as sementes de Gládio. Um dia toda a humanidade terá que aprender TODA A VERDADE sobre GLADIO. Não restará nada de ficção “ocidental”.

*A extensa pesquisa, documentada detalhadamente por Annie Lacroix-Riz, é devastadora para o mito “ocidental”.
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FONTE


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Colonialismo: um câncer que deve ser erradicado no século XXI * Sergio Rodriguez Gelfenstein/VE

Colonialismo: 
 um câncer que deve ser erradicado no século XXI

Parte(I)

Na sua magnífica obra “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”, escrita em 1916 e publicada pela primeira vez no ano seguinte, Vladimir I. Lenin já delineava, no alvorecer do século XX, os contornos da situação colonial que permite situá-la como uma característica fundamental da fase imperialista da sociedade capitalista.

No Capítulo VI intitulado “A divisão do mundo entre as grandes potências” fornece inúmeros números e “dados gerais irrefutáveis ​​das estatísticas burguesas e das declarações de cientistas burgueses de todos os países, uma imagem da economia mundial como um todo. capitalista nas suas relações internacionais, no início do século XX, às vésperas da primeira guerra mundial imperialista.

Lenin cita o geógrafo alemão A. Supan que afirmou que “o traço característico deste período é, portanto, a divisão da África e da Polinésia”, porém alerta que “…devemos ampliar a conclusão de Supan e dizer que o traço característico do período o que nos preocupa é a distribuição definitiva do planeta", mas estabelece claramente abaixo que "...definitiva não no sentido de que seja possível distribuí-lo novamente - pelo contrário, novas divisões do mundo são possíveis e inevitáveis ​​-, mas nisso a política colonial dos países os capitalistas já terminaram a conquista de todas as terras desocupadas que existiam em nosso planeta. Pela primeira vez o mundo já está dividido, de modo que o que se pode fazer a partir de agora são apenas novas distribuições, ou seja, a passagem de territórios de um “mestre” para outro, e não a passagem de um território sem mestre para outro "dono".

Precisamente, estamos a assistir a esta nova distribuição, à passagem de territórios de um senhor para outro e isso é evidente em África, mais do que em qualquer parte do mundo. O líder africano, Ahmed Sékou Touré, no seu livro “África em Movimento”, escrito em 1967, confirmou cinquenta anos depois de Lenine que tal situação ainda era evidente. Disse, quando já era o primeiro presidente da Guiné independente, que: “Longe de afirmar que o colonialismo acabou, devemos, pelo contrário, acompanhar com extrema vigilância todas as suas actividades nas suas novas mutações, descobrir as suas manifestações menores e combater para poder destruir a tempo todas as suas manobras diretas ou indiretas”: palavras proféticas que – novamente – quase sessenta anos depois ganham força total. As potências coloniais sofreram mutações nas suas práticas imperiais e estão a expressar-se através de novas manobras de todos os tipos destinadas a manter o seu controlo sobre o mundo e a pilhagem dos seus recursos naturais.

Em vários trabalhos sobre este tema fiz referência ao facto de esta divisão do mundo ter sido consagrada durante o Congresso de Berlim de 1884 e 1885. Este marco marca o início da dominação colonial directa de África e a sua inserção tardia no sistema capitalista mundial. . Num ensaio escrito por DP Ghai citado pelo economista cubano Silvio Baró, professor do Centro de Investigação da Economia Mundial (CIEM) de Havana, assinala-se que em 1965, quando se desencadeou a tempestade de independência em África, este continente “forneceu os 22 % da produção total de cobre, 67% de ouro, 90% de diamantes, 8% de petróleo, 76% de cobalto e 25% ou metais mais secundários, como antimônio, cromita, manganês e outros do grupo da platina; e a sua participação está crescendo rapidamente em petróleo, gás natural, minério de ferro e bauxita.”

Outro aspecto do sistema configurado no Congresso de Berlim tem a ver com elementos que visavam estabelecer a estrutura política do continente. Nos tempos coloniais, não existiam Estados nacionais em África. Como salienta o falecido investigador cubano Armando Entralgo, só se poderia falar de “três níveis de desenvolvimento da comunidade humana, que explicam precisamente a extensão da resistência que estas comunidades oporiam à agressão estrangeira”. Estes níveis são: Estados multiétnicos como a Etiópia, o Egipto ou Marrocos; povos com laços temporais que ocupam um território sob domínio colonial de um país que lhes conferiu “identidade” no quadro do sistema colonial e internacional e tribos com uma forte identidade e raízes num determinado território.

Esta estrutura foi destruída pelo colonialismo, dando origem – a partir da ordem colonial – a estados nacionais que nasceram da desarticulação e atomização das comunidades humanas e que nada tinham a ver com a organização que se tinham dado em África. Assim, como no resto do mundo, o colonialismo plantou para sempre a semente da discórdia que em África adquiriu as características de “problemas intertribais, interclãs, interétnicos e fronteiriços”, entre outros, como bem apontou Entralgo.

Os europeus não deixaram em África – como não deixaram na América Latina – as sementes de um capitalismo desenvolvido, o mesmo que de forma revolucionária começou a substituir o feudalismo como modo económico predominante no planeta. Uma forma desnaturada e diminuída de capitalismo foi estabelecida em África. É isto que explica a permanente instabilidade política que se tornou inerente ao sistema: conflitos eternos e aprofundamento do subdesenvolvimento.

A hipocrisia colonial quer agora “assumir o controlo da questão” para “salvar” África dos males que eles próprios criaram. Até agora neste século, a França interveio na Costa do Marfim em 2002, 2004 e 2011, na República Centro-Africana em 2003, no Chade em 2006 e 2008, no Djibuti no mesmo ano, no Mali em 2013 e foram arquitetos juntos com os seus parceiros da NATO da invasão da Líbia e da divisão do Sudão.

No entanto, como disse o próprio Presidente Macron em Março do ano passado durante uma visita ao Gabão, “a era da ‘África Francesa’ acabou”, lamentando que o seu país ainda seja visto como interferindo nos assuntos internos das nações africanas. Quando fez esta declaração, tinha passado pouco mais de um ano desde o início da operação militar especial da Rússia (SMO) na Ucrânia.

Pode-se dizer que o OME foi a causa do recente desastre do poder francês em África? É difícil dar uma resposta definitiva neste sentido, mas não há dúvida de que este facto teve uma influência relevante na decisão dos Estados africanos de se distanciarem de França, o que nada mais é do que mais uma expressão da crise estrutural da A hegemonia ocidental sobre o planeta, especialmente quando, na direção oposta, um número crescente de países desse continente se aproxima da China e também da Rússia. Vale lembrar que com a entrada da Etiópia e do Egito no BRICS, o continente africano adicionou três membros àquela organização, mais que a Europa e a América, que só têm um e apenas abaixo da Ásia, que tem cinco. De tal forma que o protagonismo de África no novo mundo que está a nascer é de relevância indiscutível.

Neste contexto, o Mali e o Burkina Faso pediram a Paris que retirasse as forças militares dos seus territórios, dada a sua total ineficácia na luta contra o terrorismo, que tinha sido citada como a razão da sua presença na região. Em Junho do ano passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Mali, Abdoulaye Diop, afirmou inequivocamente que o seu país “não quer que os direitos humanos sejam instrumentalizados ou politizados, uma vez que não são prerrogativa de nenhum país ou civilização” e acrescentou: “É surpreendente que alguns países que “Eles praticaram a escravidão ou a colonização, hoje são eles que ensinam aos outros sobre os direitos humanos”.

As mudanças de governo lideradas por jovens soldados anticoloniais e defensores da soberania dos seus países que deslocaram líderes estabelecidos no poder graças ao apoio das metrópoles transformaram a face da região e, em certa medida, de toda a África . As ameaças de Paris em resposta à decisão dos novos governos de expulsar os militares europeus foram respondidas com o acordo do Mali, do Burkina Faso e do Níger em avançar para mecanismos avançados de integração que incluem os aspectos económico, financeiro e até mesmo de segurança e defesa.

Dentre os antecedentes desses países, além de um passado colonial comum, vale destacar que em algum momento de sua história recente tiveram governos socialistas indígenas que foram brutalmente combatidos e destruídos pela interferência da metrópole em aliança com os Estados Unidos que agora, de forma oportunista, procura culpar a França por todos os problemas de África, para abrir um espaço que lhe dê presença e relevância na África do futuro.

Da mesma forma, os três países foram atacados por forças ligadas ao terrorismo incorporadas na Al Qaeda e no ISIS, que se infiltraram através da fronteira norte do Mali com a Líbia, na sequência do ataque liderado pela NATO contra Muammar Gaddafi. Por outro lado, a obrigação destes países de utilizarem a moeda franco CFA é uma expressão do controlo colonial que a França ainda exerce na região. Esta moeda é controlada pelo Tesouro francês, 50% das reservas monetárias devem ser colocadas naquele país ao mesmo tempo que todas as moedas e notas que permanecem ligadas ao euro são cunhadas na metrópole.

Os protestos contra o CFA, chamado “a última moeda colonial” têm crescido nos últimos anos, como expressão da rejeição do controlo colonial francês sobre as finanças de catorze países africanos. Consequentemente, os apelos ao fim do CFA expõem, talvez como nenhum outro facto, o repúdio ao sistema colonial francês.

Pelo contrário, os acordos entre os países africanos com a China e a Rússia avançam a um ritmo acelerado. O povo africano não esquece que no último meio século contou com o apoio multilateral irrestrito da China e da Rússia, mesmo no domínio militar, para se livrar do colonialismo, dando continuidade à cooperação na difícil tarefa de se tornarem países independentes.

É algo que a França e os Estados Unidos não podem fazer, sabendo que deram financiamento, armas e treino a estes grupos terroristas que cresceram sob o seu abrigo no Afeganistão, no Iraque, na Síria e noutros países. Como dizem alguns líderes africanos: “Não se pode fazer parte da solução quando se faz parte do problema”.

Numa lógica regional, é válido dizer que a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), instrumento sob controlo colonial que tem quase 400 milhões de habitantes e 5.112.903 km², e que contava com 15 membros, está hoje em crise aberta. 4 países estão suspensos e deles, três saíram definitivamente, Burkina Faso, Mali e Níger. O quarto, Guiné, também deverá deixar a organização. Pode-se dizer que, apesar disso, a maioria permanece, mas é preciso saber que os três que saíram e o quarto suspenso, perfazem 3.000.000 km², do total de 5.112.903 km², ou seja, 60%.

No fundo, pretende-se dar-lhe um carácter único e universalizar a cultura ocidental como se o Ocidente fosse o mundo inteiro. O antigo presidente nigeriano Olusegun Obasanjo disse de forma diferente: “A democracia ocidental não funcionou adequadamente em África, desde que foi imposta pelos colonizadores”. O antigo presidente nigeriano foi mais explícito: “O exercício da democracia de tipo ocidental falhou no continente africano porque, com esse modelo político, a opinião da maioria da população é ignorada”, destacando que tal democracia constitui “uma regra de algumas pessoas sobre todas as pessoas, e essas poucas pessoas são representantes apenas de uma parte das pessoas, e não os representantes plenos de todas as pessoas."

Neste contexto, em vez da democracia liberal ocidental, Obasanjo acreditava que a “democracia afrocêntrica” deveria ser aplicada no continente, diferente do sistema democrático ocidental, uma vez que tal sistema nada tinha a ver com a história e cultura dos povos do continente. . Concluiu afirmando que: “A fragilidade e inconsistência da democracia liberal tal como é praticada deriva da sua história, conteúdo, contexto e prática”, razão pela qual deveria “questionar o seu desempenho no Ocidente”.

Será muito difícil para a Europa - devido à sua convicção de ser um jardim rodeado de selva, como afirmou Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança - aceitar um mundo multicultural, multiétnico e multipolar. Muito menos que o seu conceito de democracia seja questionado e questionado.

Mas os novos líderes do Mali, Burkina Faso e Níger Assimi Goita, Ibrahim Traoré e Abdourahamane Tiani respectivamente, compreenderam a situação, aprenderam com o seu passado e com os erros cometidos por alguns dos seus antecessores, como Kwame Nkrumah e Thomas Sankara, e tomaram medidas Ele diz que o Pan-Africanismo “deve ser mais do que uma teoria contida em livros best-sellers ou escondida em discursos para agradar às multidões”.

Agora, estes novos dirigentes demonstram inteligência estratégica e compreenderam que a principal aliança deve ser entre os militares e o povo para que se tornem sujeitos activos da gestão política do Estado. Mas foram mais longe, estão a construir mecanismos comuns de defesa e segurança, tal como estipulado na Carta Constitutiva da Aliança dos Estados do Sahel inicialmente formada pelos três países. A sua capacidade e visão do futuro levaram-nos a produzir mudanças radicais, incluindo a escolha dos seus aliados e o traçado de um rumo diferente na cena internacional. Nessa medida, expulsaram os franceses, ao mesmo tempo que estabeleceram relações fortes com a China e a Rússia.

No quadro da descolonização, o continente africano saudou a declaração conjunta assinada há algumas semanas pela Grã-Bretanha e pelas Maurícias que reconhece a soberania das Maurícias sobre o arquipélago de Chagos e Diego García, deixando o Sahara Ocidental como o único e último país africano que aguarda o exercício dos seus povo do seu direito à autodeterminação, reconhecido por todas as organizações internacionais para encerrar o capítulo do colonialismo.

São manifestações da luta anticolonial no século XXI. Como se pode verificar, o colonialismo ainda está vivo e manifesta-se de diferentes formas. Neste momento, em África, estão a ser travadas as batalhas anticoloniais mais importantes do planeta. Devemos conhecê-los e apoiá-los.

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Colonialismo: um câncer que deve ser erradicado no século XXI 

Parte(II)

Caros colegas e amigos: Fomos convocados para este evento transcendente sobre “Descolonização e cooperação global” num momento em que o mundo se debate com uma crise que parece prever uma transição para um mundo melhor.

Apresentação apresentada no Simpósio Internacional “Descolonização e cooperação no Sul global”

Sergio Rodríguez Gelfenstein / Especial para Con Nuestra América
De Xangai, China

Várias manifestações apontam para esta direção que não será mais a da hegemonia global ocidental. Aqueles discursos triunfalistas dos Estados Unidos e da Europa que percorreram o mundo sinalizando “o fim da história” e uma vindoura “guerra de civilizações” estão sendo superados pela evolução dos acontecimentos em várias latitudes e longitudes do planeta. Isto anuncia o declínio do colonialismo como fenómeno inerente ao capitalismo. No novo mundo que está a nascer, nenhum país será capaz de subjugar outros da mesma forma que as potências europeias fizeram no passado, primeiro e depois os Estados Unidos. O mundo multipolar emergente só será viável se a cooperação substituir a competição, a paz substituir a guerra e a amizade substituir o conflito.

Três acontecimentos recentes de impacto global: a pandemia da COVID19, a Operação Militar Russa na Ucrânia e o genocídio sionista na Palestina, produziram mudanças substanciais no planeta. A aliança entre a China e a Rússia, a emergência de outros centros de poder regionais e globais, a criação e o fortalecimento dos BRICS e de outros organismos multilaterais regionais e globais, são uma expressão clara desse mundo que está a nascer. A economia mundial está em mutação enquanto o eixo da geopolítica global se desloca do Atlântico Norte para o grande espaço eurasiano, onde a condução da política mundial ocorre cada vez mais.

O projecto estratégico da Rota da Seda manifesta a possibilidade certa de construir relações económicas numa perspectiva ganha-ganha, benéfica para todas as nações do planeta. Nem os Estados Unidos nem a Europa podem evitá-lo económica, política ou militarmente. Seus últimos esforços se manifestam nas áreas financeira e cultural. Mas são os últimos estertores de uma fera que morre quando já não tem capacidade para continuar a exercer o seu domínio. O paradoxo é que isto os torna mais perigosos: resistirão ao declínio e à cessação da sua economia com todos os instrumentos à sua disposição.

A crise que vivemos é civilizacional e só pode ser compreendida, na sua verdadeira magnitude, numa perspectiva multidimensional. Os países ocidentais e o norte global parecem não ter capacidade para superar a crise. Pelo contrário, todos os seus passos recentes visam envolvê-lo mais e aprofundá-lo. A natureza multidimensional da crise dá-se porque se manifesta nos domínios da alimentação, da energia, da ecologia e do ambiente e da cultura, mas também nos domínios político, social, económico, financeiro e, o que é pior, no ético e moral. Não temos tempo nem espaço nesta ocasião para expor em todas as suas dimensões como a crise global se manifesta em cada uma destas áreas.

Como diz o filósofo boliviano Rafael Bautista, a ascensão das potências emergentes não só reequilibra o poder global, mas também torna possível a descentralização da economia e da política globais. O arranjo centro-periferia é o que não pode mais ser mantido; Com a ascensão dos BRICS, são recuperadas culturas e civilizações que o mundo moderno considerava arcaicas e completamente ultrapassadas. A Índia e a China recuperam a sua importância global pré-moderna. Por isso não é estranho que boa parte da literatura americana fale em “choque de civilizações”. O Ocidente sente-se ameaçado pelo despertar de civilizações que considerava atrasadas, o que apenas refuta a sua alegada superioridade civilizacional.

Neste contexto, o primeiro mundo não é mais um modelo civilizacional. E a economia que patrocinou durante cinco séculos já não é sustentável. Em termos energéticos, o mundo já não pode seguir o modelo de consumo ocidental. Os Estados Unidos, com 6% da população mundial, consomem 25% da energia. Como não o tem, e sobretudo porque não o terá, sai à procura onde existe em abundância, em alguns países dão-lho sem hesitação, mas noutros, governos e pessoas dignas recusam ser maltratado, renunciar à sua soberania e renunciar ao usufruto da propriedade que lhe é própria. Então a força é usada, mas um número crescente de pessoas e países no planeta resiste. Nessa medida, a imposição colonial está a tornar-se mais difícil. Como diz Bautista, “a colonização não seria mais possível repetir no século 21”.

Esta luta implica também um combate dentro de quadros ideológicos, uma vez que essas tentativas de subjugação a este nível manifestam a intenção patente de estabelecer padrões universais de comportamento, também coagidos para que, em termos conceptuais, as relações internacionais justifiquem esta prática. A ideia eurocêntrica e ocidentalizada das ciências sociais e humanas tem como objetivo justificar a dependência impondo uma lógica que expõe a unilateralidade da civilização ocidental, tentando esconder que o nosso planeta é multicivilizacional e multicultural.

Desta forma, se aceitarmos que o mundo caminha para a multipolaridade, devemos também aceitar que temos a obrigação de construir diferentes visões de cada um dos potenciais pólos de poder (e devo dizer que a América Latina e o Caribe aspiram a ser um deles) para que possamos ver o mundo a partir do que fomos, do que somos e do que queremos ser. Nessa dimensão fomos colonizados, libertámo-nos parcialmente ao conseguirmos a independência política e não queremos que nenhuma pessoa no planeta sofra por causa desta calamidade. Assim, devemos propor-nos a construção de um corpo teórico e conceptual próprio que nos dê uma perspectiva própria conducente a assumir uma posição que questione e combata a visão ocidental num campo holístico da sociedade, do Estado e das relações internacionais.

Já é evidente que a filosofia e a ciência política ocidentais estão em declínio como instrumentos de controlo e sujeição globais face ao impulso de civilizações até agora marginalizadas e excluídas. O Ocidente não tem capacidade para compreender o mundo e oferecer respostas corretas que coloquem os seres humanos no centro de todas as preocupações e atenções. A pandemia COVIG19 e o genocídio na Palestina são provas irrefutáveis ​​desta afirmação.

Dirijo-me novamente a Rafael Bautista que, citando o conceituado historiador da Universidade de Yale, Paul Kennedy, lembra que sustenta que os assuntos internacionais não vão bem no mundo político e social e que até começam a desmoronar, tanto institucional como discursivamente . Mas ele vê este colapso como um ataque ao “mundo livre”, sendo incapaz, segundo Bautista, de ver que se trata do colapso cultural-civilizacional da própria hegemonia ocidental, isto é, do chamado “mundo livre”.

O mundo ocidental e os seus fundamentos filosóficos e políticos surgiram em primeira instância da democracia ateniense, que se baseou em Aristóteles, Platão e Sócrates, entre outros, e que se desenvolveu ao longo do tempo tendo em conta a Revolução Francesa e a Revolução Industrial na Inglaterra. Nos séculos XVII, XVIII e XIX, poderosos impulsos institucionais foram consolidados após o fim da Segunda Guerra Mundial, primeiro, e o desaparecimento do mundo bipolar e, mais tarde, da União Soviética. Tudo isto lhe permitiu construir uma “verdade” geopolítica de acordo com os seus interesses e valores, que têm como principais pilares a hegemonia e uma visão universal da cultura. O colonialismo faz parte desses valores, desses princípios como instrumento de dominação e controle. Nessa medida, lutar contra o colonialismo é lutar pela construção de um mundo mais justo, equitativo e democrático, que consagre a igualdade jurídica de todos os povos e países do planeta. Portanto, como diz Bautista “faz sentido falar de uma descolonização da geopolítica”.

Mas esta luta e esta transição que implica uma transformação estrutural do planeta em termos de instituições, cultura, democracia e relações internacionais deve ser feita na perspectiva de todos. Não pode ser como a Carta das Nações Unidas, que foi elaborada por apenas 51 países, mantendo a grande maioria marginalizada e excluída do debate, incluindo quase toda a África, a Ásia e as Caraíbas. Hoje o mundo é composto por 194 países, não podemos continuar a ser governados por uma minoria que se presume ser a “comunidade internacional”. Lutar contra o colonialismo no século XXI é dar voz aos povos e territórios que ainda não a têm.

Sim, a maior parte do planeta consegue impor-se e estar à altura de assumir a liderança da transição civilizacional, outro mundo é possível, mas deve ser feito num new deal, ou seja, deve ser fundada outra organização que organiza as relações internacionais no planeta porque evidentemente a Organização das Nações Unidas (ONU) não está qualificada para fazê-lo.

Mas aceitando que fomos convocados para este evento na lógica atual, não podemos esquecer que, como diz a convocatória desta reunião: “Em 14 de dezembro de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) adotou a Resolução 1514 (XV), “Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais”, que declarou inequivocamente a necessidade de pôr fim ao colonialismo em todas as suas formas e manifestações de forma rápida e incondicional. No entanto, até hoje, quase 2 milhões de pessoas continuam a viver à sombra do colonialismo, e as consequências do colonialismo continuam a afectar os antigos países coloniais através da política de poder, da infiltração cultural e da construção do discurso. Entretanto, a colonização nas suas formas económica, financeira, tecnológica e ideológica, bem como outras formas de neocolonialismo, coloca desafios a todos os países do Sul global.” Este é e deve ser o nosso norte.

No entanto, embora o trabalho da ONU tenha levado à descolonização de mais de 80 países desde a sua fundação, neste momento apenas reconhece a existência de apenas 17 colónias, mas segundo organizações especializadas no assunto, na realidade a lista deveria incluir mais. 60 colônias ao redor do mundo.

Infelizmente, hoje nos encontramos porque, embora possa parecer incrível, quando já estamos no século XXI, esta questão que deveria ter feito parte da história e uma questão lembrada como algo desastroso que não deveria continuar a acontecer, continua a espalhar-se por todo o mundo. nosso planeta como uma mancha negra na história da humanidade. É nosso dever conhecer, denunciar e lutar contra este flagelo até que seja definitivamente exterminado da face da terra.

Caros colegas e amigos. Venho da Venezuela, da América Latina e do Caribe. Uma região que viveu e vive a afronta colonial na sua expressão total. Realizamos este evento num ano em que a nossa região comemora alguns acontecimentos que dão o tom da luta anticolonial, pela independência e autodeterminação dos nossos povos.

Para os latino-americanos e particularmente para os sul-americanos, 2024 é o ano do bicentenário das batalhas de Junín e Ayacucho, travadas pelos exércitos patriotas contra o colonialismo espanhol no território do Peru, erradicando para sempre o colonialismo da antiga América do Sul espanhola. Ainda foi necessário continuar a lutar por mais quase 75 anos para que depois da derrota do exército espanhol em Cuba, este país irmão e Porto Rico pudessem aceder à sua independência, claro, mediada pela intervenção militar dos Estados Unidos que foi definitivamente derrotado em Cuba em 1959., embora ainda mantivesse os porto-riquenhos em situação de subordinação colonial.

Hoje, duzentos anos depois, o Reino Unido, a França, os Países Baixos e os Estados Unidos continuam a possuir territórios na nossa região, sob administração colonial. O Reino Unido controla Anguila, Bermudas, Montserrat e as Ilhas Caimão, as Ilhas Falkland, as Ilhas Virgens Britânicas, bem como as Ilhas Turks e Caicos. A França, sob subterfúgios legais, administra Caiena, Guadalupe e Martinica. Os Estados Unidos para as Ilhas Virgens e Porto Rico e os Países Baixos para Curaçao, Aruba, Bonaire, Saba, Santo Eustáquio e São Martinho.

Porto Rico é uma colônia clássica dos Estados Unidos desde 1898. Entre 1952 e 1953, Washington realizou uma simulação perante a ONU na qual aparecia o início de um processo de descolonização. Posteriormente, seus poderes executivo, legislativo e judiciário negaram esse teatro, especialmente por meio da lei de promessas e do conselho de controle fiscal. O Estado colonial mergulhou Porto Rico numa situação de pobreza, desigualdade social, deterioração da economia e da qualidade de vida. Após 126 anos de colonialismo, o povo de Porto Rico continua a lutar. É hora da descolonização de Porto Rico.

As Ilhas Malvinas estão localizadas no Mar Argentino, a aproximadamente 600 km da costa patagônica, e possuem uma área de 11.718 quilômetros quadrados. Incluem duas ilhas principais, Soledad e Gran Malvina, e aproximadamente 200 ilhotas menores.

A partir de 1765 foram ocupados pelas autoridades espanholas do Vice-Reino do Río de la Plata e em 1816 foram assumidos como parte da soberania argentina. Na década de 1820, as autoridades argentinas baseadas em Buenos Aires tomaram posse das ilhas em 10 de junho de 1829. Em 3 de janeiro de 1833, as Ilhas Malvinas foram usurpadas à força pela Grã-Bretanha, que expulsou os residentes argentinos e iniciou uma ocupação colonial sistemática que se estende até hoje.

Desde o século XIX, foram acrescentadas resoluções nacionais e internacionais exigindo que o Reino Unido devolvesse as ilhas. Em 2 de abril de 1982 teve início a Operação Militar Rosário, que recuperou as ilhas, situação que permitiu a hasteagem da bandeira argentina até 14 de junho de 1982.

A Constituição Nacional Argentina, em sua reforma em vigor desde 1994, expressa em sua Primeira Disposição Transitória que “a Nação Argentina ratifica sua soberania legítima e imprescritível sobre as Ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul e os correspondentes espaços marítimos e insulares, porque. é parte integrante do território nacional. A recuperação desses territórios e o pleno exercício da soberania, respeitando o modo de vida dos seus habitantes e de acordo com os princípios do Direito Internacional, constituem um objetivo permanente e inalienável do povo argentino.”

Alguns destes territórios mantêm o seu estatuto colonial escondido sob diferentes formas de engano perante o olhar destemido da ONU que, no caso do colonialismo como em muitos outros, tem demonstrado total ineficácia, incapacidade e falta de vontade para decidir o desaparecimento total deste flagelo.

Para nós, latino-americanos, a vitória de Ayacucho em 9 de dezembro de 1824 e a capitulação assinada pelo general espanhol Canterac em nome da coroa espanhola significaram – de fato – o reconhecimento da independência do Peru e de toda a América do Sul. do direito internacional. Foi também o culminar de um longo período de quase 15 anos de mobilizações, pronunciamentos, declarações, batalhas e vitórias em favor da liberdade das antigas repúblicas hispano-americanas. Ayacucho foi a consumação de um esforço conjunto destinado a derrotar a monarquia, o absolutismo e o domínio estrangeiro na América do Sul.

A participação em Ayacucho de oficiais e soldados de um exército composto por venezuelanos, colombianos, equatorianos, peruanos, chilenos, fluviais e alto-peruanos, reunidos em torno dos mesmos ideais, mostrou a força superior de uma unidade capaz de superar a inferioridade numérica. prevalecer com base na qualidade superior de seus combatentes, líderes, oficiais e generais.

Para o nosso Libertador Simón Bolívar significou o compromisso cumprido assumido no seu juramento de Monte Sacro, Itália em 1803, a concretização dos ideais delineados na Carta da Jamaica em 1815 e a possibilidade certa de concretizar os preceitos institucionais delineados no seu discurso no Congresso de Angostura em 1819.

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