segunda-feira, 21 de outubro de 2024

12 de outubro, a “descoberta” da América e da história oficial * EDUARDO GALEANO/Uruguai

12 de outubro, a “descoberta” da América e da história oficial
EDUARDO GALEANO/Uruguai

O Dia de Colombo tornou-se o Dia da Reunião. São encontros de invasões coloniais? Os de ontem e os de hoje, reuniões? Não deveríamos chamá-los de estupros?

Cristóvão Colombo descobriu a América em 1492? Ou os vikings descobriram isso antes dele? E antes dos vikings? Aqueles que moravam lá não existiam?

A história oficial conta que Vasco Núñez de Balboa foi o primeiro homem a avistar, desde uma cimeira no Panamá, os dois oceanos. Aqueles que moravam lá eram cegos?

Quem deu os primeiros nomes ao milho e à batata e ao tomate e ao chocolate e ao abacate e ao amendoim e às montanhas e aos rios da América? Hernán Cortés, Francisco Pizarro? Aqueles que moravam lá eram mudos?

Disseram-nos, e continuam a ouvir, que os peregrinos do Mayflower foram colonizar a América. A América estava vazia?

Como Colombo não entendia o que diziam, acreditava que não sabiam falar.

Como estavam nus, mansos e davam tudo em troca de nada, ele acreditava que não eram pessoas de razão [a coroa espanhola os considerava legalmente menores].

E como tinha certeza de ter entrado no Oriente pela porta dos fundos, acreditou que fossem índios da Índia.

Mais tarde, durante a sua segunda viagem, o almirante ditou um ato estabelecendo que Cuba fazia parte da Ásia.

O documento de 14 de junho de 1494 registrava que a tripulação dos seus três navios o reconhecia como tal; e quem dissesse o contrário receberia cem chicotadas, seria imposta uma pena de dez mil maravedíes e sua língua seria cortada.

O notário Hernán Pérez de Luna atestou.

E no fundo os marinheiros que sabiam assinar assinaram.

Os conquistadores exigiram que a América fosse o que não era. Eles não viram o que viram, mas o que queriam ver: a fonte da juventude, a cidade do ouro, o reino das esmeraldas, o país da canela. E retrataram os americanos tal como haviam imaginado anteriormente os pagãos do Oriente.

Cristóvão Colombo viu sereias com rosto de homem e penas de galo na costa de Cuba e sabia que não muito longe dali homens e mulheres tinham cauda.

Na Guiana, segundo Sir Walter Raleigh, havia pessoas com os olhos nos ombros e a boca no peito.

Na Venezuela, segundo o Irmão Pedro Simón, havia índios com orelhas tão grandes que as arrastavam pelo chão.

No rio Amazonas, segundo Cristóbal de Acuña, os indígenas tinham os pés virados para baixo, com os calcanhares para a frente e os dedos para trás, e segundo Pedro Martín de Anglería, as mulheres mutilavam um dos seios para atirar melhor as flechas.

Anglería, que escreveu a primeira história da América mas nunca esteve lá, também afirmou que no Novo Mundo havia pessoas com cauda, ​​como disse Colombo, e as suas caudas eram tão longas que só podiam sentar-se em assentos com buracos.

O Código Negro proibia a tortura de escravos nas colônias francesas. Mas não era para torturar, mas para educar, que os senhores açoitavam os seus negros e quando fugiam cortavam-lhes os tendões.

As leis das Índias, que protegiam os índios nas colônias espanholas, estavam mudando. Mas mais comoventes foram os pelourinhos e as forcas pregados no centro de cada Plaza Mayor.

Muito convincente foi a leitura do Requerimento que às vésperas do assalto a cada aldeia explicava aos índios que Deus tinha vindo ao mundo e deixado São Pedro em seu lugar e que São Pedro tinha o Santo Padre como seu sucessor e que o Santo Padre tinha feito à rainha de Castela um favor de toda esta terra e que por isso deviam sair daqui ou pagar tributo em ouro e que em caso de recusa ou demora seria feita guerra contra eles e seriam convertidos em escravos e também em suas mulheres e filhos.

Mas esta exigência de obediência foi lida nas montanhas, no meio da noite, em língua espanhola e sem intérprete, na presença do notário e de nenhum índio, porque os índios estavam dormindo, a algumas léguas de distância, e tinham não tinha a menor ideia do que estava acontecendo com eles.

Até agora muito, 12 de outubro foi o Dia de Colombo.

Mas tal coisa existe? O que é a raça, além de uma mentira útil para espremer e exterminar os outros?

Em 1942, quando os Estados Unidos entraram na guerra mundial, a Cruz Vermelha daquele país decidiu que o sangue negro não seria admitido nos seus bancos de plasma. Isso evitou que a mistura de raças, proibida na cama, fosse feita por injeção.

Alguém já viu sangue negro?

Mais tarde, o Dia de Colombo tornou-se o Dia da Reunião.

São encontros de invasões coloniais? Os de ontem e os de hoje, reuniões? Não deveríamos chamá-los de estupros?

Talvez o episódio mais revelador da história da América tenha ocorrido no ano de 1563, no Chile. O forte Arauco foi sitiado pelos índios, sem comida nem água, mas o capitão Lorenzo Bernal recusou-se a render-se. Da paliçada ele gritou:

—Haverá cada vez mais de nós!

—Com que mulheres? –perguntou o chefe índio.

—Com o seu. Faremos de vocês filhos que serão seus mestres.

Os invasores chamavam os antigos americanos de canibais, mas mais canibal era o Cerro Rico de Potosí, cujas bocas comiam carne indígena para alimentar o desenvolvimento capitalista da Europa.

E os chamavam de idólatras, porque acreditavam que a natureza é sagrada e que somos irmãos de tudo que tem pernas, patas, asas ou raízes.

E eles os chamavam de selvagens. Nisso, pelo menos, eles não estavam errados. Os índios foram tão brutais que não sabiam que deveriam exigir visto, certificado de boa conduta e autorização de trabalho de Colón, Cabral, Cortés, Alvarado, Pizarro e dos peregrinos do Mayflower.

*Artigo publicado em La Haine em 12/10/2017, que reproduzimos agora devido à sua relevância.
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